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25 de Abril: Uma vontade militante de sonhar de uns jovens no interior do país

 25 de Abril: Uma vontade militante de sonhar de uns jovens no interior do país
28.04.24
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 25 de Abril: Uma vontade militante de sonhar de uns jovens no interior do país

por
José Rui Martins

Éramos miúdos, com idades entre os 15 e os 17 anos. No dia 25 de Abril estudávamos num colégio particular, Tondela só tinha ensino público até ao ciclo preparatório. A maioria dos nossos colegas da primária, por mais dotados que fossem para os estudos, ficavam pelos trilhos de trabalhos árduos. Tondela, ainda vila, não oferecia alternativas para os jovens onde me incluía. Somente o assaltar de árvores de fruta, os jogos de hóquei — sem patins —, mas com toros de couve secos com a parte curva na extremidade da raiz e demais diabruras que suscitavam a reprovação acirrada, facto que nos medalhava uma “bardinagem” especializada. A biblioteca da Fundação Calouste Gulbenkian, num beco do Largo da Câmara, tinha como coordenadora a nossa Dª Isabel que, mais do que incentivadora à leitura que nos apontava os livros de aventuras d’“Os Cinco” de Enid Blyton — incentivo que absorvíamos para adaptar com diabruras de suplantação — e, mais do que isso, nos perdoava o bater constante da bola contra as vidraças da biblioteca que, partindo amiúde, a nossa bibliotecária substituía gratuitamente, quem sabe, como o seu incentivo à leitura.
Bem, mas acontece que numa bela manhã, à chegada às aulas, assistimos a um burburinho inabitual dos professores e funcionários ouvindo em transístores – aquelas caixas a pilhas com antena para ouvir o relato — notícias que, para nós eram totalmente fora de jogo e, no caso, de penalties onde não descortinávamos nem a baliza, nem o guarda-redes e muito menos o rematador.
A verdade é que, este grupo de jovens, sem serem politizados, à saída das aulas ao fim de tarde, caminhavam em fila, vociferando aquilo que mais tarde viemos a saber que eram palavras de ordem. Apenas “Abaixo a guerra!” era o murmúrio. Por mais que demos voltas à memória, continuamos por saber quem nos contou a mudança que se estava a operar no país; em que momento é que recebemos uma politização que, no caso, foi mais polinização espontânea. O mesmo aconteceu, na noite de 30 de Abril, aí sim já com opção ideológica criada em longos seis dias, em que nos juntámos para uma diatribe monumental — de momento ainda em segredo de justiça e merecedora de um livro policial — para celebrar a primeira vez que era feriado a 1 de Maio, Dia do Trabalhador. Tal foi a proeza e as consequências que poderia ter em casa e no posto da polícia que, decidimos, inspirados “Nos Cinco”, fugir de casa para um rio para não irmos para a prisão. Seria ali que passaríamos a viver numa clandestinidade que merecesse ficar nos anais da Revolução que só acontecia nas notícias que chegavam das grandes cidades. O nosso barco era uma câmara de ar de camioneta para 4 tripulantes. Rio abaixo, numa das bordas do “Mial” — assim se chamava aquele braço de água, um polícia avistou a embarcação e, condenatório resignado, soltou um desabafo memorável “Têm sorte, seus filhos da mãe, de só podermos agora prender em flagrante delito…”. A frase é escrita assim para simplificar, mas continha adjetivação que, para ser historicamente exata, levaria a uma investigação “literáriosherlockiana”.
A partir daí, pensávamos a revolução a cada momento. As discussões políticas estavam na ordem do dia. Tínhamos o nosso partido particular, como dizia o Zeca Afonso, eramos o nosso próprio comité central.
Entretanto, continuávamos no colégio particular sem ensino complementar público e lutar por ele passou a estar na ordem do dia e passámos a ser a coluna apartidária do Salgueiro Maia sem quartel, mas conduzido pelo chaimite da igualdade social.
Reunião informal sem códigos nem senhas, numa rua sem luz de Tondela sem candeeiros públicos, sentados no muro com os pés num adormecido poste elétrico congeminámos o plano político. Aquele quartel era por nós denominado exatamente como “Poste”, lugar de fumar às escondidas onde um maço era comprado a meias pelo fraco orçamento militante.
O plano foi posto em marcha: depois das férias do Natal, ninguém regressava ao colégio particular e ocupávamos as instalações do liceu que, nessa altura, já era até ao 5º ano – atual nono.
Meu dito, meu feito. Apresentou-se o pelotão ao Dr. Soeiro e transmitiu o ato revolucionário. “Queremos que o ensino complementar seja criado em Tondela. Muitos dos nossos colegas não podem prosseguir os estudos por a sua família não poder suportar os custos do ensino privado. Como não há ainda professores, só precisamos de uma sala para darmos aulas uns aos outros”. A fidelidade histórica desta retórica não está confirmada, mas a intenção é fiel. Com a sua amável anuência política, aqueles de nós que tínhamos as melhores notas em cada disciplina, davam as aulas aos outros com a mesma grelha de horário que tínhamos no colégio. Uma diferença é de salientar: a meio da manhã, uma hora constava no horário para “ponto de situação e estratégia política a adotar no dia seguinte”. As aulas decorriam com uma disciplina de turma muito maior do que quando tínhamos professores.
A nova etapa política consistiu no apanhar do autocarro para Lisboa em direção ao Ministério da Educação para a rendição do ensino particular. Na altura, eram cinco horas de viagem. Em Lisboa, aguardavam-nos o pelotão de camaradas que estavam nas lutas no ensino universitário. Uma retaguarda protegida.
Entrámos, miúdos de 15, 16 anos, no Ministério da Educação e dissemos que queríamos falar com o Ministro. Disseram se tínhamos audiência marcada e, não nos lembramos, devem ter rido desbragadamente perante aquela insurreição juvenil que queria ensino para todos numa vila do interior. Não podíamos entrar, mas a traquinice de infância operou e, à sorrelfa, tomámos o elevador para o andar do Ministro. Era o Major Vítor Alves que, quando nos procuraram devolver à procedência, fez um sinal e escutou a reivindicação. Gentilmente, aquele capitão de Abril, disse que poderíamos estar descansados que iria tomar os procedimentos necessários à criação do ensino complementar e exaltou a estratégia que tínhamos seguido de partilharmos conhecimentos até à colocação dos novos professores.
O que é certo é que, dias depois, a direção da escola recebeu o despacho que concretizava aquele sonho de militância de Abril numa vila em que, os jovens protagonistas, eram apelidados de comunas e onde os seus pais sofriam o enxovalho de não lhe darem a educação do antigo regime “Deus, Pátria e Autoridade”.
E assim terminaria esta crónica, não sem antes:
– Prestar tributo a um 25 de Abril que devolveu a liberdade e a capacidade de atingir o sonho impossível, usando as próprias forças;
– Reconhecer que a militância e o poder popular não foram exclusivo das forças partidárias, mas muito mais do MFA que deu um exemplo de desprendimento do poder, doando-o ao povo para realizar eleições livres — facto nunca visto no mundo, associado aos cravos na ponta das espingardas e não derramamento de sangue, com exceção de uns pides que mataram populares em Lisboa;
– Exaltar o idealismo e o romantismo de um povo que garantiu que em 50 anos o país se desenvolvesse democraticamente, não permitindo que saudosistas se apoderem dos valores e conquistas de Abril e continue a pugnar por um 25 de Abril que não se comemora num dia de calendário, mas pela luta incessante de criar um país mais justo, igualitário e fraterno.
Ah, tinha-me esquecido que alguns desses jovens, em 1976, decidiram criar o Grupo de Teatro Amador Trigo Limpo que esteve na base da criação da ACERT. E continuam eternamente felizes de continuarem loucamente apaixonados por um 25 de Abril que aconteça cada dia no interior das nossas vidas.

Dedico este texto ao Capitão de Abril, Gertrudes da Silva, e ao combatente antifascista Flausino Torres de quem recebi preciosos ensinamentos de humanidade, generosidade e amor à liberdade.

Nota sem ser de rodapé: por coincidência ou não, o espaço ocupado pelos jovens para criar o ensino complementar público é o atual Novo Ciclo ACERT.

José Rui Martins
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