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Fragmentos de um Diário – 24 Setembro 1981 (continuação II)

 Fragmentos de um Diário - 24 Setembro 1981 (continuação II)
21.05.22
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 Fragmentos de um Diário - 24 Setembro 1981 (continuação II)

Depois bateram à porta e entrou a Lena. A nossa amiga vinha apenas ver se estávamos bem e pôr-nos à vontade por mais umas duas horas. E saiu.
Assim que ficámos a sós, a Fátima começou a despir-se devagar, primeiro o Kispo, depois a camisola, as calças, a roupa interior, enquanto eu a contemplava numa imobilidade estética como se olhasse uma obra de arte, esquecido de mim mesmo. Foi preciso ela aproximar-se, tocando-me com o calor do seu corpo para finalmente eu perceber que era ela mesma que ali estava, completa, e para mim. Depois do sexo, sentámo-nos encostados à cabeceira da cama. Agora chegara a hora da palavra.
São poderosas as palavras, às vezes. Mais que instrumentos de comunicação, elas transformam-se em carne, em sangue, em alma entre dois amantes. O que dissemos um ao outro vinha com o selo da autenticidade, permitia a visibilidade do ser.
Ela resumiu a vida dela em notas curtas e sublimes. Trabalhava em Berna, num hotel, no serviço de mesa, com algum tempo livre para se dedicar ao estudo. Completara o grau que correspondia em Portugal ao liceu e inscrevera-se numa faculdade num curso de História. A sua convicção é que este curso lhe facultaria aproximar-se intelectualmente de mim, caso um dia… A história das ideias, a evolução da arte, as revoluções políticas, dar-lhe-iam o enquadramento cultural de que carecia nas nossas conversas em Lisboa. E, para além dos estudos, lia, lia sempre que podia, sobretudo à noite. A uma pergunta minha, relevou sobretudo Fernando Pessoa. Que lhe bastava a poesia deste autor para lhe preencher as noites. Gostava muito de Alberto Caeiro, sempre que o lia, de imediato o meu rosto lhe iluminava a leitura. Lembrava-se de quando eu quase só lia este heterónimo, de como brilhava o meu olhar, das minhas fantasias sobre a vida no campo e os convites para que fugíssemos para uma floresta, para bem longe dos deuses que escarravam e dos homens de visão doentia. Por Ricardo Reis sentia um carinho meio melancólico, porque identificava nele a raiz do meu mal. Explicou-se, afirmando que a consciência da brevidade da vida e de cada instante que eu bebera nesta poesia fizera o meu encanto mas fora também a origem do meu desassossego. Concluiu que foi Fernando Pessoa o autor do nosso encontro, do nosso milagre. Sem ele eu teria sido outro, medíocre como os outros.

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