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“O Capital no século XXI” é um documentário que se baseia no livro, com o mesmo título, do economista Thomas Piketty, lançado no ano de 2013. Com uma análise histórica densa e uma narrativa simplificada, atractiva e persuasiva, fazendo uma retrospectiva de centenas de anos de capitalismo, este documentário de Justin Pemberton suscita claramente o debate sobre a influência do sistema económico no crescimento e na desigualdade e a necessidade de reformas no sistema capitalista.
Ao ver o documentário, conclui-se facilmente que foi feito um exercício de prospecção da história e da circulação do dinheiro: fala-se na queda do Muro de Berlim, na constatação do fim das ilusões criadas pelo sistema comunista, na riqueza que poucos têm e na escassez de meios em que muitos vivem, no dinheiro que vemos e no que se esconde em circuitos complexos.
No fundo, questiona-se o poder do capital e do património herdado, formula-se a hipótese de uma sociedade de maior justiça financeira, pondo-se em causa o popular pressuposto de que “a acumulação de capital acompanha o progresso social”.
Para além da pertinência e actualidade do assunto, se quisermos falar também em metodologia ou em organização lógica dos conteúdos apresentados, começamos pelo comunismo, pelo colapso dos sistemas de leste, pela queda do Muro de Berlim (Piketty tinha 18 anos). Isso serviu para mostrar que esse momento histórico significou o regresso da desigualdade, ao jeito dos séculos XVIII e XIX. Passamos pela Revolução Francesa, Revolução Industrial, Primeira Guerra Mundial (luta sobre o capital), Crise dos Anos 30, New Deal de Roosevelt, Segunda Grande Guerra (guerra industrial), nova sociedade dos Anos 50, Movimentos Sociais dos Anos 60, Choque Petrolífero dos Anos 70, Reagan e Thatcher como símbolos de uma era, Anos 80 com supressão do poder da mão-de-obra, era dos “yuppies”, crédito dos anos 90, explosão do sistema em 2008, influência do capital na política, capitalismo de Estado na China, paraísos fiscais, gigantes tecnológicos, mudanças no mercado de trabalho e situação/perspectivas dos jovens.
Considero importante destacar algumas expressões do documentário que elucidam bem o que está em causa: “A taxa de rendimento do capital foi quase sempre superior, em toda a história, à taxa de crescimento da economia”; “Apenas 15% do dinheiro que vem das maiores instituições financeiras vai efectivamente para o crédito”; “O capital cresce a taxas superiores às do produto interno dos países”; “Nos próximos 10-15 anos, 12 triliões de dólares serão passados dos baby-boomers para os seus filhos como herança”; “Só 15% do capital vai para actividades produtivas, o resto é especulação para quem já tem capital.”
Este documentário assume-se como um gesto de alerta, de alternativa e de esperança. Permite-nos discutir as propostas e as soluções, mas o mais importante é fazê-lo sem virar a cara, sem indiferença perante o que acontece por todo o mundo, ao nível da riqueza, poder, progresso social e desigualdade. Não nos dá respostas definitivas, mas indica-nos um caminho.
Esse caminho pode passar por medidas como os impostos sobre as heranças, o controlo de capitais e o fim dos paraísos fiscais. Está provado que a riqueza herdada se multiplica, a desigualdade gera desigualdade e quem recebe as heranças acaba por não fazer nada para contrariar estas tendências. São também necessárias, de facto, sanções contra os territórios que facilitam evasão fiscal e, portanto, urge a alteração da forma de cálculo dos lucros tributáveis de cada Estado, impedindo a manipulação da localização de lucros. Como é bem referido no documentário, os países acabam por roubar a base fiscal uns aos outros, dando peso a uma indústria de gestão de fortunas. Na verdade, os paraísos fiscais significam redistribuição ao contrário, implicam uma redução de receitas fiscais que poderiam ser usadas para todos, e que acabam em favor de quem tem o capital.
Percebe-se a discussão interessante sobre o mérito da forte tributação nos rendimentos e no património. No entanto, tendo em conta a tendência de aumento das desigualdades, ao longo deste documentário são sugeridas medidas fundamentais e passos na direcção certa para conseguir uma redistribuição mais efectiva, impedir a eternidade do direito de propriedade, dando-lhe verdadeiro acesso à classe média e dirimir a sua concentração, exigindo, por exemplo, a devolução à comunidade de uma determinada percentagem anual.
Talvez possamos dizer que a narrativa macroeconómica, neste documentário, esteja incompleta. Talvez possamos duvidar que as medidas sejam tecnicamente correctas ou afirmar que são utópicas também, tendo em conta a dificuldade de conciliar interesses (por exemplo, acordar e consensualizar impostos globais, quando a redistribuição deveria acontecer ex-ante, ou seja, antes do produto criado, para ser mais eficaz). Talvez possamos acusar o documentário de tentar manipular as audiências com uma linguagem pop, e de fugir ou tratar levemente a sociedade e a política, cuja complexidade não pode ser menosprezada. Talvez possamos sentir falta de uma análise mais clara, no que diz respeito à relação entre desigualdade e comércio internacional, e sobre o impacto do progresso tecnológico. Talvez esperássemos uma distinção clara entre o capital produtivo (investimento, criador de emprego) e o capital financeiro cada vez mais digitalizado (afinal a empresa é um activo financeiro ou um centro de produção?), o que não acontece, ou uma abordagem à componente salarial e aos mecanismos endógenos da reprodução de desigualdades. Talvez, no fundo, já soubéssemos que este modelo gera desigualdades e não haja aqui grandes novidades, nem para nós, nem muito menos para instituições como o FMI, Comissão Europeia e OCDE.
Mesmo assim, fica-se claramente com a ideia de que é preciso agir, alterar o modelo e impedir que a riqueza produzida não volte mais ao ecossistema e a não beneficiar aqueles que verdadeiramente a possibilitam. Portanto, intervenção estatal e regulação, políticas tributárias, Estado redistributivo, aumento da progressividade da tributação, combate aos paraísos fiscais, tributação sobre a herança. Isto é proposto no documentário, desmontando afirmações e concluindo, sobre os gigantes tecnológicos, que afinal estes não criam empregos como as indústrias do passado; que o mercado financeiro já não é intermediário como dizia Adam Smith; que a economia é mais produtiva, mas afinal os lucros da produtividade vão para grupos pequenos; que 2/3 das pessoas no mundo vão ser mais pobres do que os seus pais; e que a nova narrativa social, contrariamente ao que se esperava, não é a da inovação, mas a de repousar activos sem arriscar, como acontece com o sector imobiliário.
Ouvimos habitualmente, em vários palcos, os discursos de redução da despesa, de imposição de défices públicos, os quais acabam por contrair a acção dos Estados. Depois, analisamos cuidadosamente e verificamos que as receitas fiscais provenientes do lado do capital têm vindo a diminuir. Algo não está correcto.
Perante esta prova relativa ao que o capital livre faz à distribuição do rendimento, e a impossibilidade de “taxar aquilo que não se consegue medir”, a indignação é óbvia, porque não fazemos todos parte disto, e o debate contemporâneo sobre a desigualdade tem tudo a ver com estas matérias. Porque o poder e a riqueza estão concentrados. Porque as democracias são susceptíveis às influências. Porque o mundo actual não é o mundo de Adam Smith.
Evidentemente, não queremos ser pobres, mas também não nos contentamos (nem acreditamos) em ser “candidatos a milionários”, num sistema cada vez mais viciado. Daí este documentário ser meritório e mais um trabalho útil de alerta ou mesmo de oposição à financeirização da economia.
José Pedro Gomes
Economista | Gestor
(Artigo de acordo com antiga ortografia)
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