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Ontem morreu o pai da esposa de um meu colega. Achei que deveria ir apresentar condolências. Mas como previra, fui incapaz de enfrentar com sangue-frio estas situações de dor. Quando, acompanhado pelo colega, me aproximei da sua esposa, que, abraçada à mãe, e ao lado da urna, estava visivelmente marcada pelo mais profundo sentimento de angústia, não pude interromper a cena e saí.
A morte deixa-nos sem defesas. Corrompe qualquer ilusão sobre a vida. Tudo perde sentido perante a ideia da sua inevitabilidade. Gente existe que facilmente a afasta do pensamento, quer pelo trabalho, pela distração, etc. Eu, ao contrário, tenho-a quase sempre como uma espécie de horizonte ou pano de fundo. Mas não apenas a morte biológica, mas também a que está associada ao esquecimento das coisas, dos gestos, das vivências, das pessoas. Algo que foi tão real como a nossa infância, e que, no entanto, se dilui, se dessubstancializa, se reduz a uns farrapos vagos de memória.
O melhor é cuidar do jardim e manter a serenidade. Mas eu não tenho jardim.
3 Junho 1984
Mais um dia. Mais uma cassete no gravador. Os Doors, que já quase não ouço. A música e a poesia insufladas de uma força ácida de vida. Que desejamos nós? Esta insatisfação constante, mesmo quando com intensidade esporeamos os dias!
Fui com a Lurdes, uma colega, tomar café. Depois fomos passear para o jardim até ao final da tarde. Ela é uma mulher interessante, bastante calada, observadora, professora de História. No quarto, pendurada na parede, expõe uma grande fotografia do Alentejo: um horizonte de terra seca com uma árvore isolada num dos cantos. É assim que ela, vinda do norte, se sente nesta terra. Entendemo-nos. Falamos quase a mesma linguagem. Mas é um tanto triste. Uma tristeza profunda, visível no modo de olhar, de se expressar. Nessa tarde, convidou-me. Era um convite diferente, notei. No tom de voz, no gesto contido. Eu fui. Ela, serenamente, como se fosse a única coisa a fazer-se na desolação desta terra, despiu-se. Eu não. Não fui capaz. Disse-lhe que não queria, que não devia. Ela olhou-me sem entender. Expliquei-lhe que não tinha coração. Riu-se. Depois amuou. Tive pena dela, acariciei-lhe o rosto, os cabelos. Biologicamente, estava tudo perfeito. Mas disse-lhe que tudo aquilo era para mim um pecado. Usei esta palavra, sem querer, saiu-me. Ela pediu que me fosse embora.
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Alfredo Simões