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Ao entrar na ACERT, a primeira coisa que nos salta à vista é o palco. Aquele enorme palco, de dois andares, qual anfiteatro grego da antiguidade, que mete inveja a qualquer recinto artístico viseense. Em certo modo, o Tom de Festa confundia-se com a própria ACERT, uma demonstração tanto da consolidação do festival como da importância da ACERT.
Um grupo ensaiava para a grande atuação: um concerto-homenagem a António Quadros cuja artista principal seria Amélia Muge. Por entre um bar que servia finos em copos reutilizáveis (alguns de nós preocupam-se com o ambiente), uma coca-cola (alguns de nós não podem beber álcool) e um olhar constante sobre o ombro para o forno móvel de lenha (alguns de nós tinham fome), aguardámos até que começasse uma das Conversas ComDão do dia. Dirigimo-nos para uma das salas, e pude ver pela primeira vez as peças de barro feitas por 30 artistas em homenagem a António Quadros (mal eu sabia a importância que um desses artistas plásticos teria nesse dia).
A primeira viagem por África: Conversas ComDão
No elenco da tertúlia estavam figuras que tinham privado, de um modo ou de outro, com o poeta-pintor. Além de Pitum Keil do Amaral e da mulher, Lira Keil do Amaral, e de Amélia Muge, não consegui apanhar mais nenhum apelido. Assim, desculpem-me Nicolau, Isabel e Rita, mas fiquem certos de que ouvi e interiorizei as vossas mensagens. Acima de tudo, esta conversa, como o próprio título indica, foi um tributo a António Quadros no seu todo. Nenhuma vertente ficou de fora. Foram lembrados tempos em Moçambique, em Tondela e ainda no Porto, três locais muito importantes para o artista — este a prova de uma verdadeira globalidade desta palavra. O seu amor pela Faculdade de Belas-Artes do Porto, e mais tarde pela Faculdade de Arquitetura do Porto, eram apenas superados pelo seu amor a Moçambique. A definição de António Quadros que eu interiorizei? Camões. Camões e um puzzle. Passo a explicar. Sendo grande fã de Camões e do próprio dia de Portugal, o 10 de junho, António Quadros pegou numa figura de Camões (agora não me recordo se era uma figura do poeta ou se uma cópia da sua epopeia, mas fiquemos pela primeira) e recortou-a em vários quadrados, como se de um bolo de aniversário se tratasse. De seguida, enviou cada uma dessas partes aos seus amigos mais próximos, que serviria depois de senha para entrar numa festa organizada por si. Se isto não diz muito da genialidade e originalidade do pintor-poeta, não sei que mais me fará convencer-vos, como me convenceram a mim.
No final da tertúlia, o momento alto da sessão. Foi lançado um repto para que se organizasse uma exposição do poeta na região. Foi então que um indivíduo se levantou no meio da sala, pele escura e um bigode finíssimo que fazia lembrar estrelas de Hollywood dos anos 1940, como Errol Flyn. Retirou o chapéu em homenagem aos presentes e apresentou-se. Era Marcos Muthewuye, moçambicano amante das obras de Mutimati Barnabé João, um poeta moçambicano que era ninguém mais ninguém menos que o próprio António Quadros. Marcos lançou um segundo repto: celebrar os futuros 100 anos do poeta-pintor em Moçambique, terra da qual passou igualmente a fazer parte. Marcos Muthewuye é artista plástico e foi um dos 30 convidados a concretizar uma peça de barro que homenageasse o patrono do Tom de Festa.
A segunda conversa foi com Rajery, o músico do Madagáscar que é ao mesmo tempo embaixador do seu país. A língua podia ter sido uma barreira, uma vez que o músico apenas falava francês, mas a ajuda da produtora portuguesa e um pouco de boa vontade à mistura proporcionaram um bom momento onde se abordou a história de vida de Rajery, e o seu trabalho enquanto representante dessa nação distante conhecida para a maioria dos portugueses à conta de uma trilogia de filmes de animação.
O caldo verde e as bifanas serviram de jantar enquanto aguardávamos pelo primeiro espetáculo. É sempre impossível falhar num festival português quando o comer é caldo verde e bifanas, portanto não me vou alongar nesta parte.
As mil e uma maneiras de cantar António Quadros
O primeiro espetáculo da noite, “Amor e Circunstância”, realizou-se no palco principal, e conseguiu encher todos os lugares daquele anfiteatro greco-tondelense. Amélia Muge fez-se rodear de músicos espetaculares, como Carlos Peninha (músico contemporâneo viseense), Filipe Raposo (cujo mestria no piano pincelou todo o concerto) ou João Afonso (Zeca Afonso pode descansar em paz, a sua voz mantém-se viva no talento do sobrinho). Admito que não costumo ter a música contemporânea e de cantautor como eleição no dia a dia, mas foi refrescante assistir a um espetáculo cheio de vida, onde cada palavra escrita por António Quadros foi uma melodia harmoniosa para os meus ouvidos (e suspeito que para os do resto da plateia). Destaco, além das incríveis vozes de Ariana Neves, Catarina Moura, Filipa Pais, Mariana Rebelo, Sara Vidal e João Neves – penso que os restantes dispensam apresentações – a incrível entrega da flautista, Luísa Vieira, também ela cantora. De pé, no canto do arranjo dos músicos e na linha da frente, o modo como sentia e como se deixava levar por cada nota foi contagiante para quem estava no anfiteatro. Por último, a poesia musicada interpretada por José Rui levou até os mais novos a sentirem-se levados para um outro mundo, onde apenas as letras de António Quadros davam vida a uma nova realidade.
A segunda viagem por África: das cadeiras da plateia aos saltos no palco
Após uma breve pausa de 15 minutos, acompanhada de mais um fino ou de uma coca-cola (alguns de nós não podem beber álcool, infelizmente, não sei se já vos tinha dito), chegou a vez daquele que foi o melhor concerto da noite, sendo que as dezenas de pessoas que terminaram aos pulos em cima do palco com os músicos são prova disso.
Rajery e a sua banda subiram ao palco e assumiram as rédeas. Assim que a primeira música tocou, o público soube que o restante reportório prometia. Todas as músicas eram cantadas numa língua de Madagáscar que calculo ser desconhecida por toda a plateia. Mas, se é verdade que a música é, em si, uma língua universal, Rajery foi prova disso. Em cada segundo, centenas de pessoas vibravam com a sonoridade claramente africana que pautava o concerto. Contudo, uma pitada de rock e funk à mistura, e nem os mais velhos conseguiram ficar indiferentes àquele bater do pé que parece uma doença incontrolável que nos afligiu durante cerca de uma hora e meia. Apenas com gestos e umas quantas palavras em inglês como “one, two, three”, Rajery conseguiu colocar o público a abanar os braços ao ritmo da música, a ajudar o baixista com esse grande instrumento que são as dezenas de palmas, e a repetir as entoações de Rajery, qual Freddie Mercury em Wembley.
O concerto terminou com dezenas de pessoas a subir ao palco e a dançar junto da banda, um momento que, certamente, deve ter espantado o próprio Rajery, que já leva mais de 30 anos em digressões. Quem diria que do outro lado do mundo, e sem perceber uma única palavra, fosse o povo tondelense quem, tal e qual feitiçaria, fosse apoderado pelo espírito madagascarense, num frenesim quase místico. De repente, o frio noturno despareceu, os edifícios à nossa volta evaporaram-se, e fomos todos transportados para uma gigantesca ilha no Oceano Índico.
A viagem não terminou por aqui. Durante mais 45 minutos, foi a vez de Fra! atuarem no palco secundário, e de premiarem o público com sonoridades que saltaram entre o afrobeat e o afrofunk. Para aqueles que gostam de se manter vivos e em euforia pela noite dentro, este foi o concerto prefeito. De repente, o palco tornou-se gigante, e toda a alegria do Gana foi transportada para o espaço da ACERT. Dos mais velhos aos mais novos, Fra! Significou o continuar de um estado de euforia começado por Rajery, e que deixou os presentes a pensarem: se calhar, todos precisamos de um bocadinho mais de África no nosso coração.
Afinal, António Quadros – desculpem, Mutimati Barnabé João – esteve vivo nesta noite, e permanecerá para sempre vivo.