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Márcia Passos
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Marco Ramos
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Pedro Escada
Como se a Fé aquecesse ainda mais as almas, por estes dias, milhões de muçulmanos, em todo o mundo, cumprem o mês mais sagrado. E purificador, nas palavras de Mamadu Sall e Papy Diop, dois senegaleses que professam, em Viseu, a fé muçulmana. Com eles estão milhões de outras pessoas a viver um dos meses mais desafiadores em que, desde que nasce o sol até anoitecer, durante o Ramadão, não podem comer, beber ou fumar. Ramadão tem origem na palavra árabe “ramida” que poderá querer dizer “calor severo”. Numa outra leitura, Ramadão pode aproximar-se à ideia de um calor que queima os pecados.
Mais do que as restrições, os crentes confiam que este é um mês de reencontro e de gratidão a Deus. Os muçulmanos acreditam que este foi o mês em que as escritas do Corão, o livro sagrado desta religião, foi revelado a Maomé, o último profeta do Islão. “Este mês é o mais importante do nosso calendário. É vital para o Islão. É de reflexão e de piedade. Permite-nos unir-nos e juntarmo-nos na mesquita durante a noite para conviver, socializar, dividir as refeições. Olhar aos mais necessitados e os menos privilegiados. Este é um período de reflexão para crescer e renascer espiritualmente”, diz Papy.
Neste dia, o calor apertava, mas a fé continua inabalável e o Ramadão é para cumprir do início ao fim. O jejum, conta, começou a cumprir quando fez 16 anos. Cinco anos antes iniciou a caminhada neste momento fundamental na vida de um muçulmano. “Foi uma fase de aprendizagem. Os meus pais incentivaram-me a começar desde bem cedo. Não o fazia na totalidade. Em vez de ficar o dia todo sem comer, fazia apenas uma refeição até à noite”, explica, lembrando a fé muçulmana é a dominante no país onde nasceu.
O jogador que alinha atualmente na Sampedrense, clube que está na Divisão de Honra da Associação de Futebol de Viseu, garante que ele e Deus têm uma relação inabalável. “A minha religião é fundamental na minha vida. Está ligada à cultura. Deram-me uma educação para poder viver na sociedade. Deram-me fé. E a fé é muito importante na vida. Alguém com fé consegue ultrapassar as dificuldades e os momentos menos bons. Deram-me também o respeito. Na sociedade, para conseguir viver com as pessoas é preciso muito respeito. Seja a cor da pele, a sexualidade, género, a cultura, etnia. A minha religião ajuda-me bastante a poder adaptar-me em todo o lado, no mundo”, sublinha.
Portugal sempre o acolheu. A ele e à religião, garante Papy
Papy reconhece que “não é fácil adaptarmo-nos a um país e sermos de uma religião minoritária”. Além do Ramadão, há outros aspetos que, num país em que a alimentação à base de carne de porco e de vinhos afamados de norte a sul do país, podem dificultar a vida de um muçulmano. Mas até agora, vinca, tudo correu bem. “Tento adaptar-me. E acumular fé, trabalho e futebol. O facto de não beber álcool, ou de não comer carne de porco não é fácil, mas as pessoas respeitam isso. No clube, quando há jantares, quando temos de comer algumas coisas, preocupam-se sempre por me trazer alguma coisa que não carne de porco e dão-me outra bebida que não alcoólica. São coisas fundamentais para mim”, revela.
E na hora de orar, há que arranjar alternativas. O importante, diz, é nunca deixar Deus de lado. “Tenho de adaptar-me. Se não conseguir orar naquele momento, espero por chegar a casa. A religião é exigente, não nos exige a fazer sempre, sempre, as orações na mesma hora. Quando há obrigações no trabalho podemos rezar quando tivermos tempo. O mais importante é não ficar sem rezar”, atira.
O jogador de 34 anos, que completa 35 no dia 24 de abril, entende que “a religião e a vida devem ser uma combinação perfeita”. “A religião é simplesmente um modo de viver: tanto espiritual, como socialmente”, concretiza. A viver há vários anos em Portugal, tendo já representado clubes como Carvalhais, Penalva do Castelo, Lixa, Sátão, Ferreira de Aves, Sernancelhe, Lusitano de Vildemoinhos, Silgueiros e Parada, Papy salienta que nunca sentiu qualquer barreira para viver em pleno a fé muçulmana. “Sempre a professei com tranquilidade. Com a ajuda das pessoas com quem lido: tanto no futebol, como no trabalho. As pessoas respeitam sempre, sempre, a minha religião. E isso dá-me uma motivação extra para viver com a minha fé”, afirma.
Há quase três mil quilómetros a separar Viseu do Senegal. E é longe da família, como acontece há vários anos, que, tal com o Papy, Mamadu Sall celebra a fé em Deus. As saudades, confessa, são muitas. Mas a fé une-os. E a tradição familiar unida a Alá aliviam esse sentimento que só em português se consegue escrever, mas que é sentido por qualquer mortal.
Mamadu garante que fé muçulmana transmite sentimento de unidade e de respeito por todos
No dia em que gravámos a entrevista, Mamadu, que joga no Carvalhais e luta pela subida à Divisão de Honra de Viseu, esteve sem comer desde as 4:50h da madrugada até às 18:42h. No total, 14 horas de sacrifício. “As pessoas acham que quando cumprimos o Ramadão estamos fracos, mas não”, garante o senegalês que vive há mais de uma década em Portugal. Foi aos sete anos que Mamadu começou a perceber o que envolvia o mês mais especial para a fé muçulmana.
“É o mês em que aproveitamos para nos purificar, para limparmos os pecados. O nosso profeta Maomé pediu a todos os muçulmanos que cumprissem o Ramadão”, acrescenta. E assim foi e é e será. Sobre a referência maior e única, Mamadu Sall lembra que Maomé disse antes de morrer que “todos os muçulmanos são irmãos: sejam brancos, pretos, qualquer cor”. “Somos todos irmãos”, sublinha. É precisamente o sentimento de unidade que leva Mamadu a afirmar que a religião é como que um ponto seguro. “A minha religião é tudo para mim. Eu respeito todas as religiões. Todas, todas, mesmo. A minha é muito especial. Sou muito fiel a ela. É difícil exprimir em palavras. Não sei como explicar. Dá-nos um sentimento de comunidade, de respeito por todas as pessoas, acrescenta.
Além de não poderem comer, nem beber nada, nem água, há no Ramadão – como em todos os dias da vida de um muçulmano – cinco momentos de oração ou meditação diários. “Rezamos sempre, mas neste mês a reza parece que mais valor. Este mês, por ser purificador, é mais valorizado. Não temos de rezar sempre na Mesquita. Como há cinco rezas por dia, pelo menos numa os muçulmanos de Viseu reúnem na Mesquita”, frisa.
É no templo sagrado que, então, tenta ir, pelo menos uma vez por dia. O senegalês de 27 anos trabalha à noite. O turno começa às onze da noite e termina às sete da manhã. Antes de cumprir as obrigações laborais, há tempo para rezar. Tem de haver. “O tempo de duração da reza é conforme. Pode durar cinco minutos.
Depende da sura [cada capítulo do Alcorão]. Há suras mais longas, outras mais curtas”, explica. No momento da meditação, a oração é feita em direção à mesquita mais próxima. “Toda a gente no meu trabalho sabe que sou muçulmano e eu sou uma pessoa que gosta de cumprir as coisas. Na hora da reza, quando estou no trabalho, faço uma pausa. Aviso o meu chefe e dá-me dez minutos para rezar. Não tenho tido dificuldades para rezar”, assume.
Hora da reza é sagrada. Mesmo que o treino esteja quase a começar
A paixão pelo futebol também não pode ser deixada de lado, mesmo que as obrigações da ligação a Deus estejam mais presentes durante este mês do Ramadão. E para isso tem contado com a ajuda do treinador da equipa. A alinhar no Carregal do Sal, Mamadu Sall tem em Paulo Listra um ombro amigo. “É uma pessoa muito fixe. É espetacular. Gosta de ajudar toda a gente. É muito especial. É alguém que percebe as coisas e está sempre pronto para ajudar”, elogia.
O jogador reconhece que nos primeiros tempos não foi fácil ambientar-se a Portugal. “Não sabia a língua e as culturas de Portugal e do Senegal são muito diferentes”, explica. Preferindo sempre olhar para o copo meio cheio, Mamadu reconhece que “vai haver sempre quem te critica”, mas prefere salientar que “haverá sempre quem te vai ajudar”.
E Paulo Listra tem sido uma dessas ajudas. “À hora que ele tem de rezar, como é antes do treino, ele já estando no campo, vai para o balneário sozinho orar. Damos-lhe essa liberdade. E deixamos aquele espaço mais ou menos isolado, sem fazermos barulho e nem o interrompemos”, diz o técnico. Mamadu Sall foi o primeiro jogador muçulmano que Listra treinou. “Eu já o conheci. Treinou em Nelas quando eu lá estava e ficámos amigos. Acompanho o Mamadu há muito tempo. Estamos sempre em contacto. Somos mais amigos do que treinador-jogador. É alguém que me liga muitas vezes mesmo para falar de questões pessoais. Somos próximos”, sublinha.
E se os treinos decorrem à noite, mesmo que de estômago vazio e sem poder beber água, a temperatura ajuda mais do que nos dias de jogo em que o calor começa a apertar. Por isso, entre Listra e Mamadu há uma conversa antes de o treinador do Carregal do Sal alinhar a equipa inicial. “Tento perceber como é que ele está. Percebo se ele está ou não disponível para jogar. Comigo ele tem a liberdade para falhar o jogo. Evito sempre que tenha de ser sujeito a um esforço físico”, garante.
O técnico aplaude a postura do atleta. Sobre Mamadu, Paulo Listra vê-lhe qualidades como a honestidade e a simplicidade. “É também muito, muito sério. Tem jogado pouco e vai treinar bem-disposto, sem tratar mal ninguém. É um exemplo. Foi dos mais humildes que encontrei no futebol. Acaba por ser um lutador. Vindo de um país, em que não conhece ninguém, chega a uma cidade onde também não conhece ninguém. Trabalha à noite, joga futebol de dia. Já conseguiu trazer a mulher, tem um filho. É alguém realizado. Costumo dizer-lhe que o problema dele é ser boa pessoa. É gente muito, muito boa”, elogia.
Além das qualidades que lhe traçou, Listra lembra que no balneário, entre colegas de equipa e equipa técnica “brincamos muito com ele, com a questão da carne de porco”. Sempre sem pisar o risco do respeito, assegura. “E ele não dá hipótese. Segue mesmo à risca. Mesmo estando longe, conseguem cumprir. Têm uma fé inabalável”, elogia. Mamadu vai comemorar 28 anos durante o Ramadão. Não terá uma festa cheia de alimentos, nem sequer bebidas. O repasto, acreditamos, será interior.