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Joaquim Alexandre Rodrigues
Nos seus artigos, fala muitas vezes da idade do ferro e do modo como alguns edifícios deste período terão servido de base para outros do período romano. Como funcionou esta transição?
Efetivamente, quando os romanos chegaram a Viseu já havia cá um castro da idade do ferro. O que os romanos fizeram foi adaptar o traçado da sua cidade à cidade que cá havia. Por isso é que nós vemos algumas construções da idade do ferro que estão na passagem entre o que era este período e a época romana. Chamam-se castros romanizados. Vemos isso muito bem nas ruínas que se encontram ao lado da Igreja da Misericórdia, ao pé do restaurante Muralhas da Sé. Aí vê-se de facto umas casas e vê-se também um bocado da muralha do século IV. Essas casas, pela análise dos materiais, porque não temos datações radiocarbónicas, estariam precisamente na passagem da idade do ferro para a época romana. A verdade é que nós tínhamos um povoado importante na idade do ferro, com uma dimensão bastante grande, que ocupava todo o morro da Sé e que ia até meio da rua do Gonçalinho. Já devia ser o que se denomina normalmente de um “lugar central”. Era um povoado com alguma importância regional. Normalmente estes povoados da idade do ferro tinham outros satélites e nós aqui teríamos o de Santa Luzia, da Senhora do Castro e outros povoados que foram ocupados sobretudo na idade do bronze, mas que devem ter também ocupações da idade do ferro. Havia uma rede de povoados na idade do ferro que realizavam intercâmbios entre si. Quando os romanos chegaram, ocuparam aquele que devia ser o mais importante porque já tinha uma estrutura proto-urbana que ocupava o morro da Sé e, portanto, adaptaram essa estrutura. Também destruíram parte, para fazer o seu fórum. Este processo que nós próprios fazemos hoje de ir demolindo casas para fazer outros edifícios, os romanos foram os primeiros a fazê-lo.
Já havia, portanto, essa noção de arquitetura e urbanismo, de destruir edifícios com um propósito…
O conceito nem é bem destruir. É reformular, renovar. Não há uma carga nociva ou negativa de destruir. Eles queriam fazer uma praça grande no topo, na acrópole da Sé, para fazerem o seu fórum. Portanto, para terem um centro político, administrativo e religioso arrasaram parte da acrópole e fizeram o fórum.
E isto tudo terá ocorrido no século I, correto?
A cidade foi fundada no século I, mas o apogeu da cidade romana deve ter acontecido nos finais do século I e início do século II. Isto a par com outras cidades da Lusitânia e do norte de Portugal. Calcula-se que tenha sido uma cidade de importância pelo menos regional, com mais ênfase do que primeiro se supôs. Por isso é que os textos que fizemos são importantes. Nós temos efetivamente alguns elementos arquitetónicos que nos apontam até para alguma arquitetura monumental que era típica das cidades com alguma relevância política e administrativa. Sabemos que era sede de cívitas. Até 2009 sabia-se que a cidade era sobretudo uma sede de civitas porque as vias romanas que saíam daqui contavam a milha zero a partir daqui. Isso só acontecia com as capitais de civitas, que são mais ou menos os nossos distritos. Depois com a arqueologia de salvaguarda, sobretudo a partir de 1997, começaram a aparecer cada vez mais indícios desta cidade romana e que se começou a revelar cada vez mais importante. Apareceram algumas casas, depois apareceu a muralha, que foi o segundo grande elemento que veio atestar a importância desta cidade na época romana. Aos poucos também foram aparecendo alguns elementos arquitetónicos como colunas e capitéis.
Nos seus artigos fala ainda de uma falta de decoração tipicamente romana e de uma indigenação das estruturas…
Sim, especialmente nos primeiros tempos. Na passagem do século I Antes de Cristo para o século I Depois de Cristo. Durante uns tempos houve uma tradição indígena na produção das peças que se utilizavam. Não eram más peças e a partir de meados do século I e depois até aos séculos IV e V temos exemplos de peças boas. Este verão, um pouco antes de ter aparecido o tal torreão, numa obra que fizemos na base da rua do Gonçalinho apareceram peças que vão começar agora a ser estudadas, mas que devem ser do século V e que são muito raras. Uma das peças até é um recipiente em ferro, algo que é muito raro acontecer e que está agora a ser limpo e restaurado para percebermos o que é aquilo. Mas há algumas peças boas e que esteticamente até são muito apelativas.
Falando um pouco dos principais monumentos, o fórum estaria localizado na zona da Sé. Qual seria a importância deste edifício numa cidade como Vissaium?
O fórum acaba por ser um conjunto de edifícios. É uma praça onde existe um templo num dos topos, com referência aos visegi e que espelha a miscigenação entre o mundo indígena e o mundo romano. O monumento é tipicamente romano, mas refere-se aos deuses bóricos que não eram conhecidos. O suporte é romano, mas algumas coisas que lá são colocadas ainda trazem uma tradição indígena.
Haveria, portanto, alguma liberdade religiosa?
Sim, os romanos tentaram sempre cultivar um pouco isso. Para mim é um dos dados que prova como eles foram inteligentes na conquista dos territórios. Obviamente que as armas falavam muito alto, mas eles iam utilizando outras formas da chamada romanização. Essa era uma delas.
O que é um fórum?
Imagine que quando se construía um fórum era, no fundo, trazer Roma até ao sítio onde se estava. Importava-se o modelo do fórum, porque um [fórum] aqui é igual a um fórum em qualquer parte do mundo. Claro que pode ter algumas nuances, mas sabemos que os fóruns têm de ter a basílica, a cúria, o templo… Há um conjunto de edifícios que fazem parte do que seria um fórum romano. A própria parte comercial com as tabernas. A única coisa que aqui é um bocadinho diferente, mas que não é inédita, é que não construíram uma cidade de raiz, adaptando-se a uma que já existia. Tarragona, que era a capital de província, tinha vários patamares também. O próprio fórum tinha vários patamares. Os romanos eram extremamente flexíveis. Eles adaptavam-se não só intelectualmente como em termos físicos ao meio onde se encontravam e isso para mim é algo espetacular. A muralha que nós vemos em Viseu na rua Formosa e da qual apareceu agora mais um torreão é em quase tudo semelhante a qualquer outra muralha do século IV, seja a de Idanha-a-Velha, de Conímbriga ou de Lugo. Os romanos tinham compêndios como o de Vitrúvio, que ensinavam a construir a cidade. Tinham uma espécie de programa para construir a cidade. As necrópoles estão sempre às portas da cidade, mas do lado exterior. Por isso é que nós temos uma necrópole importante em S. Miguel [de Fetal]. Porque era uma das portas, precisamente pela rua do Gonçalinho. Temos outra necrópole em cima ao pé do funicular, que era outra entrada pelo norte. Teríamos outra necrópole na zona do Serrado e outra na avenida Emídio Navarro. Este é um trabalho que queremos fazer em 2025, que se prende com as muralhas e as necrópoles.
Esta questão sobre as necrópoles estarem fora da cidade está relacionada com uma poupança de espaço ou já haveria uma noção de higiene e de salubridade?
É tudo junto, mas sobretudo de higiene e salubridade. É a questão de não se querer correr riscos com doenças. Quem for a Pompeia ou a outras cidades tão bem conservadas vê que os cemitérios estão do lado de fora, à porta das cidades.
Voltando para a questão do fórum, de que modo estava ele incluído na cidade de Vissaium?
No topo está o templo, onde por vezes há o culto imperial, a Júpiter ou a outra divindade. Depois existe um conjunto de edifícios que estão nas laterais e no outro topo. A cúria, onde se tratava da parte administrativa, e a basílica é outro exemplo. Depois há fóruns maiores e fóruns mais pequenos. Quando as pessoas vão a Roma e dizem que estiveram no fórum eu pergunto em qual, porque eles lá têm três ou quatro. Dependia do imperador, porque depois cada um queria deixar a sua marca e, portanto, lá iam destruindo e colocando o seu fórum ao lado ou por cima. Neste caso concreto, temos um no topo da Sé. Os vestígios mais evidentes deste fórum encontraram-se quando se fizeram as obras, em 2003, no Museu Grão Vasco. Apareceu a base de uma coluna que devia ser provavelmente da basílica.
Para quem visse de fora da cidade, também haveria um certo espetáculo simbólico certo?
Sem dúvida. Hoje as pessoas não têm noção do que é o morro da Sé, mas aquilo é um remate de um esporão. O ponto mais alto da cidade é a zona da pousada, onde era o antigo hospital. Aí descemos em direção à rua Formosa e depois voltamos a subir pela rua do Comércio. Imagine a imponência que seria na época ter ali um conjunto de edifícios no topo de uma colina. Claro que depois tem um declive mais acentuado para a zona do rio Pavia e para a zona da Prebenda, mas era efetivamente uma marca do poder de Roma que estaria aqui. Então quem viesse da zona de Mangualde, que tinha um via importante que chegava por ali, chegava à zona da Casa de Saúde e viam logo ali a cidade e o fórum. Devia ser uma vista incrível.
Além do fórum, pensa-se que Vissaium tivesse um anfiteatro. Onde estaria localizado?
A ideia que nós defendemos do anfiteatro é que este estaria no cimo da rua do Gonçalinho quando entronca na rua Direita. Há muitos anos fiz uma intervenção na rua Direita muito próxima dessa zona e já na altura pareceu, na análise de umas pedras grandes, que estas pudessem ser bancos. Tudo apontava para que houvesse ali alguma coisa. Mais recentemente foram feitas umas sondagens, mas não fui eu que as fiz e portanto não sei ainda quais os resultados. Foram feitas num edifício devoluto precisamente nessa curva e que vai ser para a autarquia fazer lá qualquer coisa. As sondagens de diagnóstico são pequenos buracos, por vezes de dois metros por dois metros. O ideal era que quantos mais fossem feitos melhor. A nossa grande frustração, quando estamos a fazer sondagens de diagnóstico, ou até por vezes arqueologia em obras, prende-se com o seu número reduzido. Imagine-se que se está num terreno em obras com seis sapatas. Nós vamos fazer as sondagens onde vão abrir as sapatas. Como por lei o proprietário só tem de custear a arqueologia que pode destruir, normalmente não se alarga e acabamos com pequenas janelas que nos dão uma informação muito truncada daquilo que ali estava. Quantas vezes eu aqui em Viseu não quis alargar para ver se havia mais alguma coisa, mas não havia essa possibilidade.
Em relação ao anfiteatro, portanto, pensa-se que este existiu até mais pela topografia. Os romanos, normalmente, não tinham ruas com curvas. O traçado das suas cidades tinhas dois eixos principais, o Cardus Maximus e o Decumanos Maximus e ao centro normalmente colocavam o fórum. No caso de Viseu, traçaram o Cardus e o Decumanos, mas o fórum ficou um pouco descentralizado, porque uma destas vias é a rua Direita e a outra, o Decumanos, seria a rua do Gonçalinho. Depois todo o resto do traçado urbano era feito com base nestes dois eixos. A malha urbana e arquitetónica era toda feita de acordo com estes dois eixos. São cidades completamente perpendiculares, tais como eram os acampamentos. Ao centro havia a tenda do centurião e à volta as tendas. Se as pessoas lerem uma das bandas desenhadas do Asterix conseguem ver o esquema de uma cidade romana. Depois havia as muralhas à volta, mas tudo sempre bem pensado.
Dada a dimensão de Vissaium, faria sentido esta cidade romana ter um anfiteatro?
Sim, sem dúvida, assim como termas. Uma cidade com esta dimensão podia ter mais do que umas termas. Há umas do tipo privado e outras do tipo público. Os mais ricos podiam ter termas privadas nas suas domus, mas também haveria as termas públicas. Agora com sondagens que fizemos perto da rua João Mendes, não tenho grandes dúvidas de que pelo menos tínhamos aí umas termas e dada a sua dimensão estou convencido que fossem públicas.
Além das termas, que tipo de casas é que existiam em Vissaium?
Teríamos dois tipos. As ínsulas são prédios, que podiam ter dois ou três andares. Temos alguns exemplos desses. Temos um que foi musealizado no fundo da rua Gonçalinho, que é onde está a sede da ARESP. Tem umas ruínas que são inclusive visitadas. Apareceram também no loteamento do Quintal. Apareceu também uma ínsula na rua do Comércio, Além disso, também já se encontraram domus, que são casas individuais. São edifícios mais pequenos e mais privados. Entre a rua Direita e a rua do Carvalho apareceu aí uma domus. Muitas vezes nós temos uns muros que encontramos, mas como temos uns buracos de sondagem tão pequenos não sabemos a que pertence esse muro, se é a uma ínsula, se a uma domus. Por vezes as janelas são tão pequenas que não nos permitem extrapolar e tecer mais considerações sobre os achados.
Recentemente falámos com um historiador para outro artigo sobre a muralha romana e ele afirmou que esta era utilizada ainda durante a alta idade média. Isto não é prova da magnitude desta muralha?
Claro que sim. Elas foram pensadas para resistir a hordas de bárbaros, por isso tinham de ser sólidas. A muralha de Viseu teria vários torreões, embora estes não fossem todos iguais. Já apareceram três torreões semicirculares. Um na Santa Cristina, muito parecido com os de Idanha-a-Velha ou até com os de Conímbriga, e depois os da rua João Mendes já são um pouco mais pequenos e mais “toscos”. Temos de pensar que esta muralha teria algo como oito ou dez metros. É o tamanho de um prédio com três andares. Imagine-se a imponência. Uma das portas devia ser perto da zona onde atualmente está a Casa da Sorte. Claro que esta muralha como era tão possante, acabou por ser reaproveitada nos séculos seguintes e mesmo que tenha sido destruída, foi utilizada durante várias centenas de anos. Daí que a muralha seguinte, em termos cronológicos, seja já a do século XV. Não temos propriamente uma muralha medieval, temos é o reaproveitamento da muralha romana em alguns pontos para ser muralha medieval na alta idade média. Estou inclusive convencido que parte da muralha romana possa ter ainda sido aproveitada para a construção da muralha afonsina. Também não seria possível fugir muito ao traçado da muralha, especialmente atrás da Sé, na rua Silva Gaio. É natural que as muralhas se fossem sobrepondo ou fossem reutilizadas.
A ideia com que se fica é que Viseu, afinal, sempre foi uma cidade central ao longo dos séculos. É correto assumir que sempre teve um papel central na região?
Viseu faz parte de um conjunto de cidades que nunca foram abandonadas, como Lisboa ou Braga. Já Conímbriga, por exemplo, foi abandonada perto dos séculos IX ou VIII, e ficaram apenas as ruínas. A nossa cidade, por causa da sua posição geoestratégica, foi sempre importante e nunca foi abandonada desde a idade do ferro até hoje. Atualmente vemos que ainda é um importante centro viário. Passam aqui as autoestradas e esta centralidade foi o que justificou sempre a sua importância.
Para terminar, se tivesse de optar por um mito romano que quisesse desmistificar, qual escolhia?
O mesmo de sempre, que o Viriato nunca aqui esteve e que é uma figura lendária em Viseu. Não é lendário como figura histórica, ele de facto existiu, mas não na nossa cidade. Provavelmente existiu na zona da extremadura espanhola. São várias as cidades que reclamam para si a figura do Viriato. Zamora é uma delas, e tem inclusive uma estátua como nós também temos. A cidade de Viseu perfilhou esta personagem no século XVII com a necessidade de se associarem as cidades a alguns heróis, numa leva de itens identitários a seguir a 1640, quando nos libertámos do jugo dos Filipes de Espanha e queríamos arranjar figuras que ilustrassem a nossa identidade e a nossa lusitanidade. Foi aí que se criou a associação de Viriato a Viseu. É uma associação romântica que não deixa de ser engraçada desde que as pessoas tenham noção da sua origem.