Dentro de uma das seis salas da Academia das Concertinas, situada em Braço de Prata, alguém tenta encontrar o fio à meada da música “Maneio”. A um canto, vê-se um quadro preenchido com várias notas musicais dispersas. Mais adiante, junto a uma janela, a tentar passar despercebido e com o olhar concentrado, António Lamelas, de setenta anos, dedilha com insegurança os botões de uma concertina. Embalado na harmonia do instrumento, abre e fecha os chamados foles, parecidos a um leque. Numa persistente tentativa, ouvem-se as notas a lutar contra alguma reticência, num pára-arranca que dura alguns minutos. Retomado o ritmo com esforço, aguça-se o engenho.
Migrante em Lisboa e com origens castrenses, está na cidade há cinquenta e três anos. Frequenta a academia desde 2019, mas sente que devido ao período pandémico não aprendeu o suficiente. Hoje, continua na tentativa-erro e na resistência, fazendo da concentração o ponto crucial para dar forma ao ritmo desenhado na partitura. Dirige-se à escola das concertinas duas vezes por semana para apreender os retoques necessários, apesar das dificuldades sentidas. Depois de aprender a ler as notas na pauta, a tarefa árdua recai sobre a sincronização dos dedos nos vários botões que compõem o instrumento. Ainda assim, não baixa os braços e deixa o recado: “Sem força de vontade, nada se consegue.” Alegre e disposto a trocar dois dedos de conversa com quem aparece, António é conhecido pelo grupo de estudantes devido à braçadeira preta que tem no antebraço. Trá-la sempre consigo. Entre risos, para não deixar ninguém preocupado, admite que é “uma forma da mão não escorregar”, sentindo-se “mais à vontade” enquanto toca.
A acertar umas notas, com aquele que parece ser o arranque para uma música de baile, ouve-se, repentinamente, outra concertina numa sala ao lado. Além de António, vários alunos ocupam as restantes cinco salas individuais, onde treinam e seguem os conselhos dos formadores. A António não faz confusão ouvi-los tocar, já que o som das concertinas dos colegas em nada causa distúrbio ao seu foco. Com a concertina pousada no colo, interrompe o ensaio e conta que o primeiro contacto direto com o instrumento foi quando veio ter aulas para Braço de Prata. Durante a infância, António cresceu rodeado do instrumento, uma vez que todos os seus tios tocavam. Um deles, o aluno recorda com saudade e emociona-se. “Tinha uns três anos quando o meu tio Joaquim levou uma concertina e se pôs a tocar. Ele tocava muito nos bailes da aldeia. A dada altura achou que algo não estava bem com ela, desmanchou-a e dividiu-a em três. Nunca me esqueceu.” Sente-se feliz por integrar a lista de alunos da academia depois de uma espera de três anos para obter uma vaga. Agora reformado, encara as aulas como uma forma de se “abstrair e fazer cumprir o sonho”.
Vítor Rosa entra na sala para prestar auxílio a António. Acompanhado pela sua concertina vermelha, deambula pelas diversas salas, enquanto ajuda os alunos que vão chegando em turnos diferentes. Com formação em piano e em acordeão, leciona na Academia há mais de oito anos. Em parceria com a Fundação Inatel, Vítor reconhece que todo o trabalho desenvolvido está a ser feito com o objetivo de “recuperar o instrumento e as suas tradições, bem como o seu reportório tradicional.” Para o professor, as aulas na instituição “servem para tirar dúvidas e aperfeiçoar”, já que o resto do trabalho se realiza em casa.
As vagas continuam totalmente preenchidas e há quem esteja à espera. Neste momento com a casa cheia, fazem parte da academia cerca de 40 alunos. António Lamelas despede-se, depois de tocar três músicas com o professor. Vítor Rosa termina a conversa dizendo que o aluno ainda está num sólido nível dois, numa escala que vai até cinco. “Mas está a melhorar. Com o tempo, vai ao sítio.”
Pelos corredores são avistados diversos objetos que nos aproximam ao Norte do país, tais como as cestas brezas, tamancos, foices e uma capa de junco. Perto do escritório que representa a Casa do Concelho de Castro Daire está um pequeno museu com as recordações celebradas pelos castrenses em terreno lisboeta. Num armário vidrado veem-se taças, medalhas, fotografias dos torneios de futebol feminino e vestes tradicionais nortenhas do rancho folclórico. O ambiente é de festa com as concertinas quase em uníssono. O turno das quatro da tarde está prestes a terminar. Na rua, o tempo ameaça uma trovoada prestes a cair, o que não é impeditivo para os alunos comparecerem. A conta-gotas, uns vão saindo e outros vão entrando. A ocupar a sala principal da academia já está Luís Marques, a tocar timidamente uma música que soa impercetível. Um pé bate no chão conforme o compasso do ritmo das notas que são manuseadas nos botões. Ao contrário dos restantes alunos sozinhos nas outras salas mais pequenas, não parece absorto na melodia. Interrompe por diversas vezes a música, aumenta a velocidade com que toca e desiste por alguns momentos.
Luís já conhece os cantos à casa. Ainda que não seja novato na academia, sente-se como tal, depois de ter desistido das aulas em 2017 devido ao falecimento de um familiar. Reformado e com origens no Fundão, quis regressar este ano para dar continuidade aos estudos que tinha deixado pendurados. O aluno reconhece que foi a melhor decisão que podia ter tomado e deixa elogios a quem está a gerir a instituição. “Há aqui uma simultaneidade muito importante entre a aprendizagem, a camaradagem e os professores que ensinam de forma muito facilitada.”, diz pausadamente, ao deixar a concertina de lado.
À semelhança de António, Luís vê a primeira concertina a ser tocada na aldeia nos anos 90. Por essa altura, recorda, as pessoas “vibravam muito com a música, porque não conheciam aquilo e ficavam espantadas.” Agora, a animação é feita dentro daquelas paredes e, desta vez, é dos seus dedos que a música surge. Nas palavras do estudante, frequentar a academia “é sair de casa, é encontrar pessoas e um ambiente extraordinário de apoio.” Luís fala pelos cotovelos. Como está numa fase de aprendizagem, “nem tocando bem, nem mal”, parece que quer mais dar conversa, do que dar aos botões. Tanto assim é, que não voltou a olhar para o instrumento.
A maioria das pessoas a frequentar é reformada. E não só de homens se faz uma academia de concertinas. Chegada à sala principal em direção a uma das salas de ensaio, uma concertinista cumprimenta desejando as boas tardes. Logo a seguir surge Arnaldo, amigo de Luís. “Que estás tu para aí a tocar?”, mete-se o amigo e Luís não se deixando ficar começa a tocar uma canção. Por entre risos, o aluno encaminha-se nas notas e de uma assentada conduz o refrão do “Bailinho da Madeira”. Enquanto dedilha, rapidamente alterna a expressão facial, assumindo uma cara mais séria. Arnaldo fica a ouvir uns segundos e segue para uma das salas para cumprimentar os restantes companheiros.
Mais adiante, cansado, Luís fecha o fole do instrumento e ouve-se, de dentro de uma sala, a melodia de “La vi en rose” tocada numa concertina. Alguns formandos saem das salas individuais e juntam-se na sala principal em silêncio a escutar. Entretanto, o estrondo ruidoso da trovoada lá fora assusta-os. A chuva cai torrencialmente lá fora e Luís adia a saída da academia. Apesar disso, ouvem-se tocar concertinas em simultâneo.
O aluno mais novo da academia acaba de chegar, cruzando-se com Luís. Conseguiu escapar à chuva, mas as escadas de madeira da academia estão encharcadas. O ponteiro do relógio assinala dez minutos para lá das seis da tarde. Francisco Pereira tem 15 anos e está na academia desde outubro do ano passado. Com raízes nortenhas, mais especificamente de Ponte de Lima e Caminha, Francisco confessa não gostar de Lisboa por causa da agitação citadina. “Não me sinto confortável aqui em Lisboa. Prefiro estar ao ar livre no campo.” Por cima do assento da partitura coloca a capa com as várias músicas que tem vindo a ensaiar. Calmamente, pega na concertina e encosta-se à cadeira em posição. Vira costas à porta que dá entrada à sala principal, cruza as pernas e olha pelo horizonte da janela que dá acesso à rua, agitando a concertina ora para a direita, ora para a esquerda. As pautas de algumas letras estão assinaladas com marcadores de várias cores. Francisco começa a tocar “Ramaideira”. Engana-se nas primeiras notas e reduz a velocidade. Hermínio Carneiro, também formador na academia, passa e cumprimenta o jovem com o olhar.
Apreciador de música popular portuguesa, Francisco sabe na ponta da língua músicas de artistas como Toy, Augusto Canário e Quim Barreiros. Tem o apoio dos pais e dos avós, uma vez que, ao tocar, sente que representa as raízes dos seus antepassados. Vítor Rosa dá pela presença do jovem e vem sentar-se a seu lado para o encaminhar. “Vamos tocar ‘Toma lá dá cá’, para ver se já consegues acertas nas notas.” Francisco ouve as instruções do professor Vítor e, juntos, tocam alguns temas. Em conversa, o jovem admite que “estar na academia é como uma terapia”, porque “alivia o stress da escola e do dia a dia.” Inclinado sobre a concertina, Francisco embala por “Rio Lima”, “Vira valseado”, “Vou para Santa Marta” e “Rosinha”.
O fechar de portas está próximo. Tanto o António, como o Luís e o Francisco já não estão na academia. Vítor Rosa e Hermínio desligam as luzes e fecham as portas das salas individuais. O dilúvio na rua já passou. A casa parece estar encerrada, mas a última concertina toca a música de despedida. É o mais antigo aluno da academia. Vítor Jesus, ficou para último a tocar “Vira da Roda”.