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Entre domingo passado, dia 13, e este sábado (19 de abril), cerca de quatrocentas pessoas estão reunidas na ACERT, em Tondela, para uma autêntica celebração da cultura. Uma mistura entre uma fábrica e uma ‘mini-cidade’, a Fábrica da Queima acontece há praticamente três décadas e reúne amantes da cultura de todas as idades para um evento em que toda a comunidade é convidada a participar.
Fora os participantes, reunidos às centenas em cada edição, o clímax do projeto— a Queima e Rebentamento do Judas – convoca em média cerca de cinco mil pessoas a assistir. Nem a chuva e a lama, na edição do ano passado, impediram cerca de duas mil pessoas de ver o espetáculo.
Desde a entrada da ACERT até ao bar deste espaço cultural, o ambiente era de folia, mas ao mesmo tempo de responsabilidade. Dezenas de jovens espalhados, em grupos ou em par, dialogavam entre si. Partiam de uma sala para outra, do bar para o espaço exterior da ACERT, onde as estruturas maiores estavam a ser construídas. No auditório Carla Torres, tanto os músicos como o grupo de canto preparavam as composições musicais. No piso superior, em várias salas, os jovens aprendiam os papéis que interpretam no sábado à noite.
Beatriz “Tis” Correia tem 21 anos e esta é a terceira vez que participa na Fábrica da Queima. Estudante na Escola Superior de Música e Artes do Espetáculo, no Porto, Tis está no último ano do curso de Cenografia. O conhecimento da Fábrica da Queima surgiu por intermédio de uma professora, que tinha ligações à ACERT. “Ela tinha-nos falado sobre quem é que queria vir para aqui para o Judas e não sei se não houve muita gente a vir, mas eu vim na mesma, sozinha e gostei”, explicou a jovem ao Jornal do Centro. “E foi mesmo uma experiência muito boa, não só em termos de pessoas e de estar a construir um boneco gigante incrível, como em termos do espetáculo em si.”
Para Tis, o projeto que se vive por estes dias em Tondela é algo que não tem igual, muito pelo seu lado comunitário. “As pessoas gostam de vir para aqui e nota-se mesmo que é por prazer, que não se vê ninguém por obrigação. Além disso, em termos técnicos, eu nunca tinha estado a fazer uma estrutura em vime e papel e não sabia sequer que era possível”, assumiu a jovem estudante, em referência à estrutura do boneco do Judas, que este ano é representado na figura de uma aranha.
“Há muito trabalho a fazer, mas as horas de trabalho que tens aqui não são chatas, no sentido em que as pessoas aqui são mesmo animadas e são mesmo bem dispostas e motivam, por muitas horas que faça aqui, eu saio fisicamente cansada, mas comigo mesma eu estou bem, então é isso que compensa”, concluiu.
Para as irmãs Sofia e Carlota Salgado, de 14 anos, esta é a primeira vez que participam na Fábrica da Queima – para se participar enquanto intérprete e na construção, é necessário ter-se pelo menos 14 anos, enquanto no caso dos instrumentos musicais, pode começar-se mais cedo a fazer parte do projeto. As irmãs moram em Tondela, e já tinham assistido várias vezes à Queima e Rebentamento do Judas. Aquilo que ambas consideram como o mais positivo neste primeiro ano do Judas foi a possibilidade de conhecer caras novas, além da possibilidade de poderem experimentar teatro.
Eva Silva, de 16 anos, é residente no Porto, mas tendo as primas a estudar, foi convidada a passar em Tondela as férias da Páscoa, a construir o boneco do Judas e a ensaiar os seus papéis. “Acho que a melhor parte é mesmo o ensaio à noite, porque percebemos melhor a peça em si”, explicou a jovem.
Não são apenas os mais jovens os primeiros a assistir ao processo de construção do boneco que é incendiado todos os sábados antes do domingo de Páscoa. Enquanto parte da sua integração na cidade de Tondela, e dentro do processo de entreajuda entre cultura e desporto, o Clube Desportivo de Tondela tem por costume mostrar um pouco dos bastidores deste projeto aos jogadores novos do clube.
Este é o caso de João Afonso, defesa central de 34 anos que já passou por clubes como o Vitória Sport Club ou o Santa Clara, e que joga pela primeira época pelos auriverdes. O futebolista considerou a visita à ACERT como uma “surpresa muito agradável”.
“Já tinha vindo aqui almoçar um dia, mas não tinha conhecimento da grandeza da infraestrutura e do trabalho que se faz aqui. É de elogiar e de louvar o espírito que estas pessoas têm aqui durante esta semana para um espetáculo da dimensão que é e que me está a dar vontade de ir assistir”, confidenciou o atleta. “Eu não posso ir porque é véspera do jogo, senão iria fazer uma força para ir assistir”, assumiu.
Já em relação à máxima dita por tondelenses sobre a cidade ter cultura e desporto de ‘primeira’, o defesa assumiu que a equipa está a trabalhar semanalmente para que, do lado de quem calça as chuteiras, o mote volte a ser verdadeiro no final desta época. “Se pudermos estar ao nível desta grandeza”, disse, apontando para a ACERT, “será ótimo para todos”.
Tanto irmãs para as irmãs gémeas como para Eva Silva ou o caso do atleta do CDT, este é o primeiro contacto com os bastidores da Queima. Tal não é o caso de Susana Alves, professora de música em Viseu que, desde 2006 participou em todas as Queimas. Bem, todas menos uma, que não fez porque calhou em semana avaliações e reuniões extra. “Nesse ano vi o espetáculo de fora, chorei o espetáculo toda e jurei que nunca mais via de fora”, contou. Todos os anos, tal e qual muitos alunos, a professora de música reserva uma semana das férias da Páscoa para integrar o coro da Queima do Judas.
“Ver os pequenitos, que vimos crescer e que vimos nascer e que agora chegam aos 14 anos a dizerem que finalmente têm 14 e podem fazer o Judas é muito reconfortante”, disse ainda a professora. “Aqui em Tondela acho que é como se fosse um ritual de passagem quase para a idade adulta. ‘Ok, faço 14 anos, vou fazer o Judas, já vou começar a ser mais crescido e a comunidade já vai saber’”, brincou Susana. “É maravilhoso vê-los a investir o tempo deles de férias que podia estar a ser utilizado para jogar em casa, que é o que muitos gostam de fazer agora, ou a ver séries, mas em vez disso estão aqui, faça frio ou faça chuva e é maravilhoso vê-los a construir, sem que haja um único telemóvel à vista”, salientou ainda.
Este ano, são quase 70 os músicos que vão dar a sua voz ou tocar um instrumento durante a Queima do Judas. Mesmo quem nunca teve aulas de música é bem-vindo a juntar-se, este modo, ao grupo de percussão da Queima. No final, o mais importante, como explicou Susana Alves, é que as coisas encaixem todas como num jogo de tetris e que a música possa estar ao serviço do espetáculo da Queima e da representação.
Na Sala Orgânica, situada num dos andares mais superiores da ACERT, os jovens dos grupos de representação vão aprendendo com os coordenadores – e encenadores, neste caso – Sandra Santos e Afonso Cortez. Em conjunto com os jovens, os dois coordenadores trabalham a melhor forma de realizar as cenas delineadas no guião deste ano.
“Nós damos o mote, fazemos alguns improvisos e depois trabalhamos então já em conjunto, e o nosso objetivo é orientá-los o melhor possível para que seja claro cada um dos momentos que têm de fazer durante o espetáculo, porque acaba por ser muita informação ao longo de uma semana”, explicou Sandra Santos. “É tudo construído nesta semana e, portanto, têm que ser coisas simples, objetivas e que funcionem visualmente”, disse ainda.
Afonso Cortez, por seu lado, considerou estar do lado dos jovens o papel mais difícil, uma vez que apenas durante esta semana estão em contacto com a peça – espetáculo que só poderá ver finalmente de forma completa no sábado à noite. “Nós já tivemos o privilégio de estar a ler o guião e a trabalhá-lo antes desta semana começar. Para estes miúdos é efetivamente uma semana só. Então para eles, decorar isto tudo, a coreografia, as deixas de música, as suas próprias cenas, com muitos grupos sempre em cena ao longo do espetáculo, é um desafio importante”, contou o coordenador.
Em relação aos temas escolhidos para o espetáculo, os coordenadores salientaram que o mais importante é que exista um elo de identificação para os jovens. “Porque os miúdos chegam aqui e se o guião não lhes diz nada, para o ano não temos miúdos, porque depois não estão interessados. Isto só funciona ainda porque eles veem um propósito nisto”, contou Afonso.
Uma semana em que experimentar é a palavra de ordem, do lado da encenação, especialmente com tantas dezenas de cérebros que podem pensar juntos no melhor a fazer em determinada cena. “Dizemos-lhes para não terem medo de experimentar connosco, de fazer coisas, que depois até podem não resultar naquele momento, mas depois há outras que se calhar resultam muito bem e são essas que depois acabamos por aproveitar e que ficam no guião. Portanto, também há uma tentativa de falha e erro que depois nos leva a um bom caminho, a aperfeiçoar aquilo que vamos fazendo”, afirmou Sandra Santos.
Embora o modo como cada ano se desenrola necessite de meses de preparação e dezenas de pessoas envolvidas, o guião de 2025 ficou a cargo de Pedro Leitão. Ao Jornal do Centro, explicou que inicialmente havia vários animais em cima da mesa e várias maneias de metaforizar aqui de que se queria falar ao longo da peça. “Concretizou-se na aranha e numa ironia engraçada, em que temos um país onde vivem mosquitos, vive um ser que é o alimento da aranha e que serve de sustento a uma espécie de poder estabelecido, que atrás de um muro, atrás de um pano, controla tudo, lança uma teia que enreda todos no desenvolvimento do dia-a-dia e que é tão sorrateira e tão perspicaz na sua maneira de atuar, que acaba a enredar toda a gente, sem que as pessoas se deem conta”, contou o guionista.
Para Pedro a semana da Fábrica da Queima é um “sentimento de loucura completa”. “Isto porque a minha parte do trabalho continua aqui, mas não tem a responsabilidade nesta semana nem o grau de implicância da minha pessoa que tem para todos eles, os outros que estão aqui a ensaiar grupos, a gerir a produção, quase 400 pessoas aqui dentro que têm de comer, têm de ser separadas, ensaiadas, espaços que têm de ser geridos. Ver que isto está a acontecer faz-me sentir muito miudinho, com muito respeito por toda a estrutura que está a acolher, que me chamou, e isso deixa-me de coração cheio”, assumiu o artista.
“Toda a gente tem muito a aprender, a ganhar, o teatro tem muito de ir buscar para se renovar, às pessoas que vêm aqui uma semana, de todo o lado do país. Há pessoas dos Açores, de Lisboa, de Porto e tem-se muito a aprender com eles aqui, eu acho”, terminou o guionista.
Pompeu José, do Trigo Limpo Teatro ACERT, está envolvido na Queima do Judas desde a primeira edição, em 1996, e é o responsável pela expressão ‘globalienação’, que dá vida ao espetáculo deste ano. O ator, encenador e dramaturgo pegou no que acontece na ACERT por estes dias para desmistificar a ideia de que os jovens ‘não querem fazer nada’.
“É gente muito nova, que são catalogados como gente que não tem disponibilidade para trabalhar para a comunidade, que não têm interesses nenhuns, que estão efetivamente enredados pela teia da aranha. É mentira, é a prova exata de que é mentira”, afirmou Pompeu, apontando para as dezenas de jovens que se movimentavam pela ACERT. “Com chuva, passam aqui a semana, trabalham, e o ano passado, inclusive, fizeram um espetáculo debaixo de chuva. Portanto, acho que para nós, não há maior satisfação que isso”, explicou.
Para o dramaturgo, a Fábrica da Queima tem dois objetivos. O primeiro é o de ensinar aos mais novos processos de interpretação, música e construção de cenografia. O segundo objetivo passa pelo empoderamento dos jovens, de “se aceitarem, de se respeitarem e de verem que numa semana é possível construir um espetáculo”. “Não enquanto uma imposição, não são um exército que a gente aqui tem, é noutra linha de funcionamento, de aceitação, de partilha, de respeito, e o espetáculo é apenas uma etapa”, confidenciou ao Jornal do Centro.
Com ou sem vento, faça sol ou faça chuva, Pompeu José garantiu que a Queima do Judas se vai fazer sempre, exceto se houver indicações da Proteção Civil em contrário. O encenador deu precisamente o exemplo do ano passado, quando “não se pôs em causa, quando eram onze horas, ou um quarto para as onze, com tudo vestido e pintado, e ninguém disse, ‘mas vamos fazer?’, mas a gente foi para fazer, não se foi colocado como hipótese”.
Pompeu José terminou dando a receita para juntar uma data de jovens sem um telemóvel à vista: “tens de motivar, seja quem for, não só na área dos jovens, mas de todas”.
“Se tiveres as pessoas motivadas para fazer, o telemóvel perde impacto. O telemóvel é efetivamente uma ferramenta de informação, ou pode ser só. Mas como eles não têm mais nada para fazer, infelizmente, é o entretenimento só que vai vingar”, detalhou. “E aqui não, como há uma coisa que para eles é importante, o resto perde importância. Mas isto não é estudado para ser assim, aconteceu”, concluiu.