19 de março de 1984
Mas pode porventura no coração de um homem caber um desejo de amor por mais que por uma mulher? Ou é este sentimento de uma plasticidade por nós voluntariamente ignorada? O amor talvez contenha várias máscaras, múltiplas dimensões, potencialidades desconhecidas. Por entre milhares, milhões de pessoas, não será de todo uma ideia descabida imaginar a margem quase ilimitada de encontros plenos. Há os que sofrem o azar de nunca se cruzarem com nenhuma dessas possibilidades. Outros, pelo contrário, recebem o privilégio de amarem e serem amados, ao mesmo tempo, por várias mulheres. É razoável pensar que esses amores se caracterizam de modos diferentes, tenham intensidades variáveis, prazos de validade de menor ou maior duração, enraízem mais profundamente, se elevem a uma gravidade mais metafísica.
Penso que é nestas últimas ideias que se distingue o meu amor entre a jovem do castelo e a Fátima. Quero muito à jovem do castelo, desejo-a com autenticidade, gosto de estar com ela, amo-a, de um certo modo. Mas o sentimento pela Fátima é de um outro cristal. É um amor lavrado com as charruas da memória, é um amor sofrido pela dor de múltiplas ausências, é um amor que se incendiou com a poesia da adolescência, que amadureceu incorporando a inocência desses verdes anos.
9 Maio de 1984
A Luísa, uma colega, disse-me, ontem: «Tens um superego bem estruturado». Tem razão. E a minha vida, em última análise, resume-se ao esforço em o destruir.
Houve conselho pedagógico. Todos os meses se realizam, numa espécie de ritual ou de castigo. Há colegas que se pelam por pertencer a este órgão da escola. Creem que lhes dá estatuto. E intervêm, discursam, interrompem-se mutuamente. Eu, como quase sempre, nada disse. Para quê? No entanto, há colegas que não se calam, sobre tudo têm uma opinião. Não os escuto. A não ser quando é a minha vez de fazer a ata.
A propósito da minha relação com os outros, o que me distancia tem a ver com o modo diferente de estar na vida: os valores, os ideais, as preocupações, os desejos. Parece que muitos vivem subordinados a uma visão excessivamente materialista, consumista. Nada lhes diz a mundividência da arte, o estremecimento poético, o desejo de infinito.