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História do fogo nas Serras da Lapa e Leomil: Colóquio em Sernancelhe reflete sobre décadas de incêndios rurais e a crise dos grandes fogos

O colóquio “História do Fogo nas Serras da Lapa e de Leomil” vai debater o impacto dos incêndios e o papel do fogo na história das serras, numa perspetiva que ultrapassa a ideia de que este é um tema a ser discutido apenas no verão

Carolina Vicente
 História do fogo nas Serras da Lapa e Leomil: Colóquio em Sernancelhe reflete sobre décadas de incêndios rurais e a crise dos grandes fogos
16.11.24
fotografia: Marta Silva
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 História do fogo nas Serras da Lapa e Leomil: Colóquio em Sernancelhe reflete sobre décadas de incêndios rurais e a crise dos grandes fogos
16.11.24
Fotografia: Marta Silva
 História do fogo nas Serras da Lapa e Leomil: Colóquio em Sernancelhe reflete sobre décadas de incêndios rurais e a crise dos grandes fogos

O colóquio “História do Fogo nas Serras da Lapa e de Leomil” vai debater o impacto dos incêndios e o
papel do fogo na história das serras, numa perspetiva que ultrapassa a ideia de que este é um tema a
ser discutido apenas no verão. O evento, organizado pelo projeto FIREUSES, vai juntar investigadoras como Marta Silva e Ana Isabel Queiroz para falar sobre o fogo e a forma como ele molda o território

Em Sernancelhe, no dia 17 de novembro, realiza-se um colóquio que traz novas perspetivas sobre os incêndios e a história do fogo nas Serras da Lapa e Leomil. O evento, organizado pelo Instituto de História Contemporânea (IHC) da Universidade Nova de Lisboa, faz parte do projeto FIREUSES, “Paisagens de Fogo: Uma História Política e Ambiental dos Grandes Incêndios em Portugal (1950 – 2020)”, em colaboração com a Câmara Municipal de Sernancelhe. Investigadores e comunidade local vão reunir-se na Casa das Novenas, em Aldeia da Lapa, para refletir sobre os resultados de três anos de investigação e debater as ligações entre o uso do fogo, o despovoamento e as políticas públicas que moldaram a paisagem ao longo de décadas.


Para Marta Silva, coordenadora do projeto, e Ana Isabel Queiroz, vice-coordenadora, este colóquio é uma oportunidade de abordar a história do fogo a partir da memória das populações locais e dos dados recolhidos em campo. A investigação abrange temas diversos como a história rural, a ecologia, a sociologia e a política, e questiona a forma como o fogo passou de uma ferramenta de uso quotidiano e de gestão rural para um fenómeno disruptivo, muitas vezes devastador, com grandes implicações na estrutura das paisagens, na segurança das populações e na própria economia da região.


O fogo na vida rural
Historicamente, o fogo foi um recurso fundamental para as populações rurais de Portugal, sobretudo no interior. Desde o início do século XX e até aos anos 50, o fogo era usado para preparar a terra, aquecer as casas, cozinhar e até fertilizar as terras. Nas aldeias das Terras do Demo, como nas Serras da Lapa e de Leomil, este recurso era um aliado para a agricultura e para a pastorícia. O fogo controlado permitia manter os matos baixos, renovar pastagens e evitar a acumulação de matéria combustível.


“Queremos perceber as causas e consequências do uso do fogo ao longo do tempo”, explica Ana Isabel Queiroz. A investigadora sublinha que o estudo procura reconstruir uma história social e ambiental dos incêndios, ao analisar as memórias e práticas das populações rurais ao longo dos últimos 80 anos. “O fogo modelou aquelas paisagens e, durante muitos anos, evitou incêndios de grandes dimensões, ao manter um ciclo constante de gestão do território”, acrescenta.


Mudanças na paisagem e as políticas florestais
A partir dos anos 50, o regime florestal foi progressivamente sendo implementado no interior do país, com a introdução dos perímetros florestais e a expropriação dos baldios, terrenos comuns que eram utilizados pelas comunidades locais. Segundo Ana Isabel Queiroz, estas políticas afetaram drasticamente a economia rural. “As populações dependiam dos baldios para sustentar as suas atividades. Estes terrenos forneciam lenha, pasto para os animais e materiais para fertilizar as terras. Quando os baldios foram convertidos em zonas florestais, as comunidades perderam uma parte significativa dos seus recursos e, ao mesmo tempo, começaram a emigrar em grande escala”.


Os impactos destas mudanças foram particularmente sentidos nos concelhos de Sernancelhe, Moimenta da Beira e Vila Nova de Paiva, onde entre 20 a 30% da população emigrou nas décadas de 60 e 70. A perda demográfica não só afetou a economia local, como também teve consequências na própria gestão do território. “Com menos pessoas a viver e a trabalhar no campo, aumentou a acumulação de matéria combustível nas zonas florestais, criando as condições para incêndios de maior intensidade e extensão”, destaca Marta Silva.


Décadas de fogos florestais e o aumento da intensidade
Entre as décadas de 80 e 90, os incêndios florestais intensificaram-se nas Serras da Lapa e de Leomil, atingindo uma dimensão crescente. As áreas florestais de Leomil e da Lapa tornaram-se epicentros de incêndios regulares, à medida que o abandono rural deixava uma vegetação densa e pouco gerida. Para Marta Silva, este período marca uma transição importante. “Nos anos 50, os incêndios registados eram, na maioria, incidentes domésticos, como fogo em palheiros ou nas próprias casas. Mas à medida que as áreas florestais cresceram, os incêndios passaram a ocorrer cada vez mais nas florestas, refletindo uma alteração profunda na perceção do fogo”.


As Serras da Lapa e Leomil, tal como outras regiões de Portugal, enfrentaram a fase dos “grandes incêndios” a partir dos anos 2000, caracterizada por fogos de enorme extensão, que ardiam em áreas praticamente despovoadas e sem qualquer tipo de gestão florestal. Em 2017, o país foi palco de incêndios devastadores, como o de Pedrógão Grande, que reforçaram a urgência de refletir sobre a falta de ordenamento e a vulnerabilidade das regiões mais isoladas.


Portugal, por influência de políticas públicas e do êxodo rural, mantém uma das manchas florestais contínuas mais extensas da Europa, composta maioritariamente por eucaliptos. Ana Isabel Queiroz salienta que a proliferação do eucalipto, como resposta ao abandono agrícola e à procura de rendimento, tem contribuído para a dificuldade em controlar os incêndios. “Esta eucaliptização, que muitas vezes não tem gestão nem ordenamento florestal, levou à criação de vastas áreas de combustível contínuo, facilitando a propagação dos incêndios”.


Os incêndios como tema o ano inteiro
As conclusões do projeto FIREUSES apontam para uma necessidade de abordar a questão dos incêndios não apenas nos meses de verão, mas durante todo o ano. “Os incêndios não são apenas um problema de verão”, afirma Marta Silva. “Para prevenir estas tragédias, é fundamental compreender como chegamos até aqui e analisar os efeitos das políticas públicas ao longo das décadas”.


Para as investigadoras, o colóquio é um momento de partilha com a comunidade local, que também contribuiu com as suas memórias e experiências para a investigação. “As pessoas que habitam estas serras são uma parte essencial do nosso trabalho. As suas histórias de vida, os seus relatos sobre os usos do fogo e o impacto das políticas florestais enriquecem a nossa compreensão sobre a história dos incêndios em Portugal”, afirma Ana Isabel Queiroz.


Os dois casos de estudo
O projeto FIREUSES foca-se em duas regiões com realidades distintas de incêndios: a Serra de Monchique, no Algarve, e as Serras da Lapa e de Leomil, em Viseu. Em Monchique, os incêndios são menos frequentes, mas tendem a ocorrer em grande escala quando surgem. Por outro lado, nas Serras da Lapa e de Leomil, os incêndios são mais regulares, mas de menor dimensão. Segundo Ana Isabel Queiroz, esta comparação permite explorar diferentes regimes de fogo, oferecendo uma visão mais abrangente sobre as estratégias de prevenção e resposta em diferentes contextos.


A escolha destas duas áreas deveu-se, em parte, ao conhecimento prévio que as investigadoras tinham sobre os territórios. “Temos uma relação de trabalho e pessoal com estas zonas, o que nos ajudou a identificar diferenças no regime do fogo e a compreender melhor a sua história rural e demográfica”, explica Marta Silva.


Incêndios e fogo como método de compreensão da história e das paisagens
Para as coordenadoras do projeto, o fogo não é apenas um elemento de análise, mas também um método para compreender as paisagens e a história das comunidades rurais. “O fogo sempre foi um método de gestão dos territórios, utilizado de forma controlada para evitar grandes incêndios, e assim manter um ciclo natural de renovação do solo e das pastagens”, explica Marta Silva. “Quando falamos do fogo como método, referimo-nos ao seu papel como modelador da paisagem, e à forma como ele ajudou a evitar a acumulação de combustível que hoje potencia os grandes incêndios”.


A presença do fogo nas paisagens das Serras da Lapa e Leomil é, para Ana Isabel Queiroz, um testemunho das transformações políticas e ambientais que ocorreram ao longo dos anos. “Estudar o fogo é estudar a história das populações que viveram nestes lugares, é perceber as alterações nas políticas públicas, e entender o impacto das decisões de ordenamento territorial. Esta história do fogo conta-nos como se transformou o modo de vida rural e como o fogo foi evoluindo, de aliado a ameaça.”


Convite ao debate
O colóquio “História do Fogo nas Serras da Lapa e Leomil” convida a população local, os decisores e todos os interessados no tema a participar. Para Marta Silva, o evento é uma oportunidade de promover uma reflexão ampla e construtiva sobre a gestão florestal e a prevenção dos incêndios. “Queremos partilhar com todos os que têm interesse nesta temática, para juntos discutirmos os resultados e identificarmos possíveis caminhos para o futuro”, afirma.

 História do fogo nas Serras da Lapa e Leomil: Colóquio em Sernancelhe reflete sobre décadas de incêndios rurais e a crise dos grandes fogos

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