Autor

Jorge Marques

08 de 06 de 2024, 11:27

Colunistas

Acupuntura das Cidades

Ainda é possível recuperar entre nós a ideia de cidade como Espaço Público, como lugar de cidadania, centro da inovação, protagonismo cultural e político?

Fez agora três anos que morreu Jaime Lerner, o Arquiteto que foi Prefeito de Curitiba e Governador do Paraná. Aquele que foi considerado o segundo urbanista mais influente do Mundo e de todos os tempos. Tive a felicidade de o conhecer por via de um amigo comum. Certo dia, já doente, pegou em mim e ensinou-me a olhar uma cidade. Foi uma lição que nunca mais esqueci!
Confessava que tinha a ilusão e a esperança, que com a picadela de uma agulha fosse possível curar as doenças das cidades. Referia-se á acupuntura e á ideia de que com essa simples e rápida picada pudesse revitalizar um ponto da cidade e toda a área em redor. Acreditava que as magias da medicina também podiam ser aplicadas ás cidades, por muito doentes que elas estivessem. Porque é que tantas cidades conseguem transformações importantes e ser inovadoras?

Quando isso acontece, acabamos por encontrar em todas elas um traço comum! Acontece, porque nessas cidades se deu a oportunidade a um começo, a um despertar. Foi isso que as fez reagir! Nunca é o planeamento, porque por melhor que ele seja não gera transformações rápidas. Quase sempre é uma ideia forte que desencadeia as ações que vem a seguir. Era isto a que ele chamava Acupuntura Urbana! Muitas vezes basta uma obra e ela permite uma mudança cultural. Outras vezes vem por um qualquer toque de genialidade. Em muitos outros casos essas intervenções são por necessidade dos sistemas de transporte urbano. Muitas cidades, um pouco por todo o mundo, estão a precisar dessa acupuntura, porque deixaram de cuidar da sua identidade cultural.

Falava-me de bons exemplos, de cidades onde um grupo de pessoas estimulava o amor pela cidade e a que chamavam “gentileza urbana”. Sim, porque as cidades não são apenas espaços físicos, tem alma e cultura. Ver a simpatia e o sorriso de todos os trabalhadores da Prefeitura/Câmara, ver que trabalham com prazer e transmitem alegria é um traço importante dessa gentileza. O artista que no fim do dia se senta numa praça a tocar é outra gentileza urbana. Artistas de teatro que andam de vez em quando pela rua, eles precisam de aplausos. Exposições de pintura, contadores de histórias nas ruas. Uma homenagem a alguém que morreu e foi um bom exemplo para a cidade. O baile na praça no Dia dos Namorados ou no dia do Santo. Assumir uma música como o Hino da Cidade, cantada e celebrada na rua, como se fosse uma fotografia da cidade. Lembrei “ Viseu Senhora da Beira”.

Lerner dizia que muitos dos problemas das cidades acontecem por falta de continuidade. O vazio de um lugar, de uma atividade, de uma moradia é uma ferida na cidade. Deve ser rapidamente preenchido! O desaparecimento dos cafés históricos que eram pontos de encontro. As cidades têm a sua história e os seus pontos de referência, lugares que fazem parte da sua memória, da identidade e do sentido de pertença. Há o dever de recuperar esses espaços para que tragam vida! Precisa-se integrar funções e gente nas ruas. A cidade é um lugar de encontro e o último refúgio da solidariedade. Nunca é um problema é sempre solução e integração.
Os carros são o maior problema das cidades e algumas vão descobrindo soluções. Lerner dizia que eles são a nossa “sogra mecânica”! Convém ter com ela boas relações, mas não podemos deixar que ela comande as nossas vidas. Ter relação, mas não ser escravo! As ruas e os seus passeios custam demasiado caro para servirem de parques de estacionamento automóvel. Muitas cidades têm-se mostrado incapazes de ordenar esta mobilidade urbana, promovendo a subversão, a falta de respeito, a agressão aos cidadãos e a redução da sua qualidade de vida.

Os parques, praças e monumentos tem um lugar relevante na cidade. No parque vê-se o que está dentro, na praça o que está em volta. São como quadros, precisam de moldura e não de tetos e cercaduras. Porquê preservar os prédios antigos? Porque esses pertencem ás ruas, porque quando se olham dão-nos lições. Desde logo tem grandes entradas que abrigam. Os modernos escondem essas entradas, estão de lado, com função secundária e sem sentido de comunidade. Os antigos contemplam a eternidade, os novos cobrem-se de placas negras.
Porque é que Lerner trazia a medicina e acupuntura para a vida das cidades? Porque o tratamento deve ser feito com uma picada rápida! A picada longa é dolorosa e parece que nunca mais acaba! Curitiba tem 2 milhões de habitantes e Lerner quis fazer no Centro Histórico uma zona pedestre. Fez isso em 72 horas, com muitas reações, manifestações, tudo difícil. Ali criou espaços destinados á criatividade, identidade, arte, arquitetura, um museu. Meses mais tarde, depois das contestações, os comerciantes pediam-lhe para aumentar a zona pedestre. Quando quis resolver o problema da mobilidade, foi ele que inventou o metro de superfície que custava 100 vezes menos que o subterrâneo!

Ainda é possível recuperar entre nós a ideia de cidade como Espaço Público, como lugar de cidadania, centro da inovação, protagonismo cultural e político? Como lugar de tolerância, onde cada um é feliz á sua maneira e sem risco de discriminação, um lugar sem medo? Em 1996 num congresso em Bremen já se falava do “Desaparecimento das Cidades”. Não no aspeto espacial, mas no conceito europeu de Cidade e centralidade. Já se deslocava a população, o comércio e os serviços para a periferia. E era a classe média que conduzia esta mudança. A suburbanização provocava uma urbanização difusa na periferia, agora transformada em arquipélago urbano com várias centralidades. Perdeu-se a oportunidade de uma acupuntura que fizesse regressar a velha centralidade da Cidade, também porque as sociedades modernas não precisam de centralidade. Agora não se mora onde se trabalha e onde se trabalha não se passa o tempo livre. Mas não se perdeu a oportunidade de recuperar os lugares da memória, nem da acupuntura do Centro Histórico! Penso que o reviver desse espaço já não está na mão dos urbanistas. A solução passa por estabelecimentos educativos e culturais que façam deste lugar um espaço de memória e pontes entre o antigo e o moderno. Do que se conhece, apenas 1/3 dos turistas visita o Centro Histórico, pelo que também a simples museificação não deverá ser o único ou o melhor aproveitamento.