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Elipses e papéis em branco

 Elipses e papéis em branco
03.12.22
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 Elipses e papéis em branco

1. Luis Buñuel nunca morreu muito de amores por “A Bela de Dia / Belle de Jour”, o filme que, em 1967, lhe deu o Leão de Ouro do Festival de Veneza e um estrondoso sucesso de público, êxito que nas palavras desassombradas do grande cineasta espanhol era atribuível mais “às putas do filme do que ao meu trabalho.”
O assunto é mesmo esse: a protagonista, a glacial Catherine Deneuve, interpreta o papel de uma mulher de um médico que, durante as tardes, avia clientes numa “casa de tias”. É verdade que Catherine “Séverine” Deneuve faz um inesquecível papel, mas o que faz deste filme uma obra-prima são as elipses do grande Buñuel, são os seus não-ditos que prendem o espectador à cadeira.
Um desses é uma enigmática caixa negra com incrustações em madrepérola cujo conteúdo um japonês vai mostrando às profissionais, mas nós, os espectadores, nunca chegamos a saber o que está lá dentro. Uma das mulheres, mal olhou para o interior da caixa, recusou logo o serviço: «non merci, monsieur, pas moi!» Já quando foi a vez de Séverine, esta imperturbável continuou o seu strip-tease, geisha loura paga a dinheiro contado.
O que foi que Catherine Deneuve viu dentro daquela caixa? As pessoas nunca mais pararam de fazer esta pergunta a Luís Buñuel. Especialmente as mulheres, confidenciou ele. A todas deu sempre a mesma resposta: «o que você imaginou que ela via.»

2. No dia 12 de Março deste desgraçado ano, numa praça de Níjni Novgorod, na Rússia, uma mulher exibiu um cartaz em branco e, apesar de nele não haver nada escrito, foi presa pelos esbirros de Putin.
No dia 27 de Novembro, em Suining County, na República Popular da China, sentado na sua cadeira de rodas, Ouyang Jinghua levantou uma branca folha A4 em apoio à revolta dos chineses e, como a imagem foi partilhada nas redes sociais, aquele octogenário ou já foi ou vai ser importunado pela polícia.
Estas folhas em branco têm um significado poderoso. Há ali um caudal enorme de sentidos possíveis. Buñuel, se fosse vivo, adoraria estas formas de luta.
Na Federação Russa e na China, os dois lados da barricada projectam naqueles não-ditos os seus desejos e os seus fantasmas.
E há medo nos dois lados. No lado de quem protesta receia-se a prisão e a tortura. No lado do poder o medo não é menor. Porque, não esqueçamos: os ditadores não temem eleições — “ganham-nas” sempre, já se sabe — mas têm medo de tudo o resto. Até de uma folha com nada escrito levantada por uma mulher. Ou por um velho.

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