Autor

José Mateus

19 de 11 de 2021, 08:27

Colunistas

Fintar a miséria da barriga

Tenho tendência mais para as artes visuais e o design, que constituem as minhas áreas de formação e prática, mas mantenho uma relação de curiosidade com o teatro

O significado de “tirar a barriga da miséria” no Dicionário Priberam é “Aproveitar alguma coisa que não se tinha ou de que se tinha falta; tirar o ventre da miséria. = DESFORRAR-SE”. Pode também significar, segundo o Wikcionário, “comer bastante depois de ter passado fome; empanturrar-se”. Pois foi o que fiz ao acompanhar, durante uma semana inteira, o 27º FINTA – Festival internacional de teatro Acert.
Tenho tendência mais para as artes visuais e o design, que constituem as minhas áreas de formação e prática, mas mantenho uma relação de curiosidade com o teatro. Agora que resido perto de Tondela pensei que seria uma boa oportunidade acompanhar o FINTA durante toda a semana em que se realiza, e assim ter a oportunidade de ver abordagens distintas à prática teatral. E valeu a pena. Foram 6 espectáculos muito diferentes que mostram a versatilidade infinita do teatro, e para mim foi como que uma formação intensiva. Presencial, que já estamos todos fartos de distâncias.

Começou com um texto de Gil Vicente – “Pranto de Maria Parda” – uma produção do Teatro Nacional D. Maria II, um bom exemplo de uma nova realidade cultural, a da itinerância dos projetos. É um privilégio poder assistir em Tondela a uma produção do Teatro Nacional, mas também uma oportunidade para aquele coletivo de dispor de uma plateia alargada e uma experiência de públicos diferente da centralidade da capital. O texto de quinhentos do mestre Gil Vicente coexiste com recursos multimédia, desenho de roupa de José António Tenente ou a música de Capicua e Xullaji. Uma abordagem muito inteligente à personagem, a personificar problemáticas contemporâneas de mestiçagem e segregação social, num contexto de gentrificação das cidades. E um paralelismo entre um ano terrível de peste em 1521 e um outro não menos problemático de pandemia em 2021. Com tudo isto poderia pensar-se que Gil Vicente ficaria irreconhecível, mas não. A interpretação de Cirila Bossuet, portadora de uma voz e dicção fabulosas, conseguiu criar dois planos distintos no espetáculo: o da sua voz, a remeter-nos para Gil Vicente e o ano de 1521, e os restantes dispositivos cénicos, a fazerem a ligação à contemporaneidade.

No segundo dia pude assistir à estreia de “ELA”, uma nova produção do Trigo Limpo teatro ACERT, o que é sempre um acontecimento muito esperado pois trata-se do coletivo da ACERT. “ELA” é o acrónimo de Esclerose Lateral Amiotrófica, a doença diagnosticada a uma das três intérpretes em palco, mas também sinaliza o pano de fundo da ação: o amor no feminino, um casal de duas mulheres e a médica de uma delas. Temática muito atual, as questões do género e de orientação sexual, aqui tratadas com extrema sensibilidade e naturalidade sem se tornarem protagonistas. Fusão entre dança e teatro, com música ao vivo. E um texto muito poético. Daniela Madanelo, Leonor Barata e Sandra Santos em palco, numa sintonia perfeita a criarem uma quarta personagem, quase virtual, a da mulher contemporânea.

A Escola de Mulheres Oficina de Teatro trouxe “Entre Eles Dois”, uma produção que de certo modo dialoga com a anterior, no sentido em que constitui também uma incursão na contemporaneidade e suas problemáticas. Neste caso um rapaz e uma rapariga que se encontram casualmente, ambos prestes a serem enviados para uma instituição psiquiátrica. Ela fez uma tentativa de homicídio da Mãe biológica, ele tentou suicidar-se. Isto é o ponto de partida para uma reconstituição das suas vidas transgressoras, num processo de confronto, mas também de aproximação entre os dois. Um palco obsessivo e fechado, uma interpretação que associa canto, solos pungentes de guitarra eléctrica acústica, movimentação cénica e representação poderosas. Hugo Nicholson e Sofia Fialho personificaram uma representação no fio da navalha.

Seguiram-se duas apresentações mais relacionadas com o novo circo e o teatro de marionetes ou animação de objetos. “Ovvio”, do Kolektiv Lapso Cirk (Espanha), trouxe uma noite de equilibrismo com pranchas de madeira. Dois incríveis acrobatas e um ambiente de poesia e controlo extremo de movimentos. Uma espécie de fusão entre carpintaria e engenharia artística. Nunca tinha visto nada assim. Combinação de leveza, suspensão, lentidão e acrobacia, mas também uma certa atitude de ironia. E “Loops”, do Engruna Teatro (Catalunha, Espanha), um espetáculo pensado para crianças e famílias. Duas personagens – Zig e Zag – que se encontram e constroem um mundo de fantasia através de dispositivos muito simples, pequenas marionetes, música, objetos de palco, animação de tecidos. Pelo caminho passam histórias de vida, os ciclos da vida e da morte, a construção da amizade, tudo comunicado com extrema simplicidade e delicadeza. Uma atuação muito poética e sensível que certamente encantou as inúmeras crianças que enchiam a sala.

O Festival fechou com “Hamlet Cancelado” de Vinicius Piedade. A história de um figurante daquela que seria a maior montagem de Hamlet já realizada na sua cidade, inconformado com o cancelamento da peça em que sonhava participar, decide fazer por conta própria uma adaptação dessa grandiosa montagem que não aconteceu. Isto independentemente de lhe estar destinada apenas uma pequena fala no fim do espetáculo. Vinicius Piedade sózinho a ocupar progressivamente o palco (avança da plateia para o palco) e a construir uma narrativa incrível, que vai crescendo, feita de suposições, marcações de espaço onde estariam os principais atores se a peça tivesse acontecido, num diálogo permanente com o público e os técnicos de produção (sobretudo o som, que tem uma importância determinante na criação das atmosferas que a audiência vai imaginando). Pelo caminho faz ligações e crítica à atualidade, nomeadamente no Brasil, mas também a uma mentalidade de exagero e grandiosidade. Foi uma sessão que me fez sentir de novo o prazer de estar numa sala de teatro com público, imprescindível, imagino eu, para a própria contrução crescente daquela personagem.

Em resumo, uma programação de grande qualidade, variada, a tomar em consideração diversos tipos de público e estilos de produção. Uma das coisas boas da ACERT é a envolvência das salas de espetáculo, o restaurante e o bar, o espaço de entrada onde se confraterniza e se vêem os artistas. No último dia, para comemorar a intensidade da semana, jantei por lá. O restaurante tem um design de ambiente que combina simplicidade e requinte. Come-se bem, o serviço é bom e o ambiente também.

No bar ainda aconteceu o lançamento de dois Cadernos de Teatro/ACERT, uma memória das produções que a ACERT/Trigo Limpo têm feito ao longo do tempo. Recuperação das produções de quase 40 anos de atividade. Edições cuidadas, com um design minimalista, que contribuem para a dramaturgia portuguesa. Como se pode ler na introdução, são uma “memória em estado de espera”, no sentido que aguardam uma nova possibilidade de produção. Apresentação a cargo de João Maria André, José Rui Martins e Pompeu José. Aprendi o conceito de dramaturgia de palco (co-criação coletiva a partir de problemáticas escolhidas, que habitualmente refletem temáticas atuais). Falou-se que nas escolas se dá pouca importância ao teatro, e que estes cadernos podem constituir um suporte para a organização de oficinas de teatro ou leitura.

A ACERT está a publicar o que fez desde o princípio e, chega-se à conclusão que muitas daquelas temáticas continuam atuais. Mas como vai demorar algum tempo até publicarem as produções mais recentes, talvez fosse interessante publicar também desde já os últimos espetáculos. Por exemplo, “ELA” é uma narrativa que diz muito aos jovens de agora, seria útil dispôr de uma edição para utilização pelas escolas. Nos meus tempos de liceu (Camões, em Lisboa, antes do 25 de Abril), fiz parte do grupo de teatro (com o saudoso ator António Montez como orientador), e por vezes ainda recordo as minhas improvisações...Vou sugerir ao Zé Rui e ao Pompeu, que editem de cada vez um texto antigo e outro mais recente. Assim, há-de haver um dia no futuro, em que o último texto do passado e o do presente, se vão encontrar.