Autor

David Duarte

14 de 01 de 2023, 08:09

Colunistas

Fragmentos de um Diário - 10 de Agosto de 1983 (continuação IV)

Não trago o coração mais puro e belo e vivo Desde que amo?

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Depois traduziu-o para português. Aqui transcrevo uma tradução do poeta Manuel Bandeira, por impossibilidade de o decorar na altura. Ela não disse mais nada. Despiu-se, deitou-se e chamou-me. Mas nunca esquecerei o modo como ela ia repetindo, sobretudo, alguns versos, e várias vezes, enquanto os dois, no corpo um do outro, devagar navegávamos o mar imenso dos sentidos:
Não trago o coração mais puro e belo e vivo Desde que amo?

Só creem no divino
Os que o trazem em si.

Ah! Se a morte nos tivesse levado naqueles instantes, tínhamos cumprido em pleno com a mais nobre missão da vida, a do amor.
Mas depois do amor e de termos comida uma sopa, bem portuguesa, feita pela Fátima, ela voltou ao tema de há pouco sobre a vida a dois. Preocupava-a a capacidade que teríamos de compartilhar habitualmente o mesmo espaço, durante dias, meses, anos. Ouve gente comentar que o casamento é como dividir um mesmo território com o inimigo. Ela crê que temos qualidades diferentes dos outros, há algo em nós de especial, mas não somos feitos de matéria transcendente. teremos com certeza defeitos parecidos com os dos outros casais que, também eles, terão sonhado o melhor.
Não lhe respondi de imediato. Esperei para ponderar as frases. Entendo que a pior coisa seria a pretensão de nos julgarmos superiores aos outros, numa atitude de soberba.
Somos iguais, disse-lhe, mas talvez a poesia nos redima de alguns defeitos, pelo menos o modo como perspetivamos a poesia, que para nós é um ato de metamorfose interior, não mero palavreado ou uma técnica de produzir belos efeitos. Disse-lhe também que as experiências, poucas é verdade, que temos tido de convivência nos dão uma ideia do que seremos como casal. E que há em nós a humildade de aceitar o outro, de o deixar ser. Dei-lhe o nosso exemplo: aceitei-a como vendedora de perfumes, não lhe impus nada, desesperei quando desapareceu, procurei-a, mesmo sem saber das suas mudanças, como estudante, como aprendiza de poesia. Ela também me aceitara como adolescente meio leviano, menino de família, incapaz de compromissos, só dedicado à poesia. Passados estes anos, estamos diferentes, mas somos os mesmos, no que há de mais verdadeiro na nossa alma, nos nossos afetos, nos nossos sonhos, na nossa visão da vida.