Autor

David Duarte

18 de 03 de 2023, 07:52

Colunistas

Fragmentos de um Diário - 10 Maio 1984

Folheio “Ulisses” de James Joyce, oferecido pela jovem do castelo, a quem tinha falado do livro, não me lembro porquê, e que agora está deitada na cama, meio sonolenta

Sou professor de Filosofia. É nobre e estimulante o objetivo desta disciplina: desenvolver o sentido crítico dos alunos, apesar de todos vivermos esmagados pela pressão da rotina e das ideias feitas. Mas como avaliar a influência da disciplina? Tudo se poderá processar a médio prazo. Por enquanto, contentemo-nos por alargar o senso comum, por o rasgar da sua pequenez. Um senso comum mais esclarecido é já um benefício.

19 Maio 1984

        Folheio “Ulisses” de James Joyce, oferecido pela jovem do castelo, a quem tinha falado do livro, não me lembro porquê, e que agora está deitada na cama, meio sonolenta. A seu lado, fico menos inquieto, menos deprimido. Há pouco, ela disse que gostaria de saber do mistério que me obscurece o olhar. Está persuadida de que se trata de um amor proibido, de um amor impossível. E pergunta-mo. Eu encolho os ombros e desvio o olhar. Ela insiste, meiga. Respondi-lhe que sim, que se trata de um amor, mas não impossível ou proibido. Mas de um amor absoluto. Ela olhou-me de um modo sério, perscrutador. Mas houve algo que a estremeceu. Depois acrescentou, a meia voz, como se falasse mais com ela mesma do que comigo, que talvez seja algo parecido com o que sente quando está com o colega com quem às vezes sai. Está com ele, mas o coração longe, está com ele, mas o pensamento e até o corpo estão distantes, está com ele, mas ferida de melancolia. Não a deixei continuar, cobrindo-lhe os lábios com os meus. A jovem do castelo surpreende-me cada vez mais. Ao perguntar-lhe por que se sentia por vezes ferida de melancolia, não me olhou, agarrou-se-me ao pescoço e com a cabeça atrás da minha, chorou. E eu fiquei a saber. E também eu chorei por ela, pela mágoa que corre no coração das pessoas. Disse-lhe que, se pudesse, seria a ela que amaria. O que a fez chorar ainda mais. E, pela primeira vez, confiei a minha história a alguém, se excetuar a Lena da Suíça. Mas a esta foi por uma necessidade prática. À jovem do castelo foi por amizade, por ternura, por gratidão. Ela escutou-me em silêncio durante mais de uma hora. Contei-lhe tudo, num desejo de partilha nunca antes sentido. No fim, ela disse algo estranho. Disse-me que me amava cada vez mais profundamente. E acrescentou que agora sabia que o nosso amor era impossível. Ao fazermos amor, eu senti, nós sentimos que as nossas almas se tocaram.