Autor

David Duarte

19 de 11 de 2022, 08:14

Colunistas

Fragmentos de um Diário: 12 Junho de 1983 (continuação)

Basta tão pouco, apenas ser recetivo aos pequenos nadas da vida

Neste domingo, convidou-me para almoçar em casa dos pais na aldeia. Hesitei. Comprometer-me estava fora dos meus planos. Mas fui. Ela apresentou-me como namorado, apenas acrescentando, irónica, futuro namorado. Sorri. Enquanto o almoço se preparava, eu e ela, pela porta do quintal, saímos para o campo. E, verdadeiramente, logo ali se estendia o horizonte alentejano por terrenos de sobreiros a perder de vista, em leves declives e suaves colinas. Fomos andando, nas calmas. Mas, súbito, mal se avistou um lago de água ao longe onde o gado vai beber a certas horas do dia, ela desatou a correr, puxando-me por um braço. Perto, largou-me, e, ou por já se ter apercebido que não havia vivalma, ou por espontaneidade de juventude, corria e despia-se à medida que se aproximava do lago. Atrás, ia lhe apanhando a roupa, completamente fora de mim, zangado mesmo e a vasculhar o arredor. Mas ela gritava:« anda, dá-me a tua alma, anda, dá-me o teu corpo, dá-me tudo que tens dentro e fora de ti». Ao chegar perto dela, espantado com o dislate, ainda acrescentou, mais baixo: «anda, dá-me a escuridão que te enegrece a alma, deixa-me iluminá-la com o meu amor». Desprevenido com as suas afirmações, olhava-a com espanto. Mas nem tempo me deu de falar, pedindo-me de imediato: «Dá-me então o teu sexo, se já alma não tens para comigo partilhar».
O que pretendo dizer é que há algo de surpreendente nestas afirmações, ultrapassam o nível da mera puerilidade. Mais tarde, depois do almoço, interroguei-a sobre o que ela pretendia dizer com a escuridão da alma. Ela não sorriu. E não respondeu logo, como seria normal nela. Explicou-me que suspeita de algo, não sabe ainda bem o quê, mas que qualquer coisa me atormenta a alma, me magoa, talvez um amor não correspondido, talvez a perceção da brevidade da vida, mas que algo me impede a alegria. E que ela gostaria de contribuir para eu ser feliz. Que basta tão pouco, apenas ser recetivo aos pequenos nadas da vida. Ela era um desses pequenos nadas da vida. E pediu-me que eu a aceitasse. À noite fomos, no carro emprestado pelo pai, a Amareleja visitar os sobrinhitos dela. Na volta, ela entrou com o carro num desvio de terra batida e estacionou.