Autor

David Duarte

17 de 09 de 2022, 07:26

Colunistas

Fragmentos de um Diário - 14 de Agosto de 1982

As noites são diferentes, as noites são o nosso encontro com a eternidade

Cheguei ontem da Suíça. Fui com algum dinheiro dado pelos meus pais, agora que o meu pai dá aulas de instrução e recebe um salário. Eles não sabem ao certo deste namoro e pensam que fui apenas em viagem para algures.

Quase me apetece dizer, parafraseando o outro: cheguei, vi e amei. A Fátima conseguiu manter-me clandestino durante os sete dias. Acredito que pelo grau de confiança que os patrões nela depositam, e que por isso qualquer movimento menos habitual não lhes terá provocado qualquer suspeita. Também pela localização do quarto dela, nas traseiras do hotel, ao fundo de um pequeno parque muito arborizado. É verdade que poderia ter havido uma denúncia por parte das colegas, que partilham os mesmos anexos. Mas, segundo ela me contou, todas fazem o mesmo uma ou outra vez quando recebem um familiar. Pena que ela não conseguiu antecipar as férias. Mas o contratempo não prejudicou o que se viveu, que excedeu as expetativas. Enquanto ela trabalhava, eu deambulava ou lia. Nas horas de folga, passeávamos pela cidade, sobretudo na zona antiga, pelas suas ruelas, as fontes de água natural, a catedral, o Parque dos Ursos e ao longo do rio Aare. Passeávamos como um casal, alegres, divertidos, felizes. Estas horas passavam num ápice, mas regressávamos de alma limpa e o rosto iluminado.

As noites são diferentes, as noites são o nosso encontro com a eternidade. As noites foram feitas para os amantes, para os que trazem no corpo asas de condor para subir às alturas dos desejos. Baixávamos o tom de voz, diminuíamos a luminosidade dos candeeiros, e, ou nos sentávamos primeiro um pouco no parque, num caramanchão, ou íamos para a cama. Na cama, fazíamos de tudo, mas a poesia deitava-se ao nosso lado. A Fátima continuava a ler Novalis, e eu pedia-lhe que lesse durante um bocado. E ela lia, em alemão. Eu não percebia nada, mas não me importava, bastava-me a cor da voz dela, a sua entoação quase rouca, sussurrada. Depois, ela repetia a leitura, mas traduzindo agora para português. Por vezes, hesitava, em busca da palavra certa, do vocábulo exato, prosseguindo vagarosa.