Autor

David Duarte

30 de 07 de 2022, 08:36

Colunistas

Fragmentos de um Diário - 23 de janeiro de 1982

Jogar ou não? Transformar o quotidiano num jogo em que os valores perdem o significado de imperativos categóricos?

    Por vezes, é como se sentisse um peso na consciência. Não me revejo moralmente nesta relação. O encontro físico vai disfarçando a falta de amor, o vazio e silêncio de minha parte. Não posso continuar muito mais tempo. Não sei mentir por muito tempo. E cansa-me a repetição do mesmo pedido. Acho que o próprio corpo biológico já reconhece esta condição metafísica da alma. Ainda reage, porque a jovem é atrevida, quente, sensual. Começo a sentir-me manchado, como um tecido com nódoas. Deve ser isto a noção de pecado.

4 de fevereiro de 1982, quarta-feira

        Jogar ou não? Transformar o quotidiano num jogo em que os valores perdem o significado de imperativos categóricos? Instalar-me no fingimento? Fazer teatro, insubmisso à moral? Viver a ética da antiética?
        Verifico o seguinte: por um lado, tenho o mundo platónico dos princípios, das aspirações; por outro, sou jogado pelas circunstâncias, atirado para situações que me constrangem a uma vivência contrária às exigências éticas. Sou pelo amor, mas vivo uma relação sem amor, apenas pelas exigências biológicas, sou pela sinceridade mas vivo em representação, sou antimilitarista mas não sei se assumirei a condição de objetor de consciência, sou pela paz mas fomento a guerra ou, pelo menos, o egoísmo.
        Como é? Destruo todo esse esqueleto do ideal, assumindo-me como um ser de contradições, que joga e é jogado, com rasgos de generosidade mas capaz de me servir do outro como um meio? Mas mesmo que me submeta a uma ética rigorosa, fá-lo-ei em nome de quê? Porquê? Para quê? Em função de um Deus que não sei se existe? Apetece-me jogar com tudo, representar ao máximo, viver na incoerência total.
        Neste momento estou em face dela, olho-a, ouço-a vagamente, tento um sorriso e penso na distância que nos separa. Mas, caramba, unidos apesar de tudo pela mesma condição humana. E converso com ela, mas sem prazer. Ela bebe uma cerveja. Eu vou à casa de banho.
        Mais tarde, escrevo: não me parece legítimo apenas jogar. Sem dúvida, frequentemente, jogamos, mesmo sem querer, mas há na vida dimensões que merecem alguma honestidade. Nem que seja a própria vida.