Autor

David Duarte

02 de 10 de 2021, 08:18

Colunistas

Fragmentos de um diário - 4 de Agosto de 1978, sexta-feira

Esta pequena cidade, calma, com um desenvolvimento lento mas progressivo, oferece já boas perspetivas

Numa casa velha dos meus avós abri uma espécie de clube onde pretendia que se ouvisse música e se conversasse. Mas muito rapidamente se transformou este retiro num antro de ruído e confusão. Isto arrelia-me. A ideia original foi corrompida e este lugar passou a ser frequentado por pessoas que vêm só na mira do jogo. Para além do falatório que tem provocado, e dos meus tios já terem manifestado o seu desagrado, também não estou nada satisfeito com o rumo das coisas. É preciso pôr um ponto final.
Como se torna difícil numa aldeia repetir uma conversa com uma moça! Há punhais de olhos, de bocas e de ouvidos à espreita, ansiosos por carne e por sangue. Mas a paciência é uma virtude a cultivar. Neste momento em que escrevo, vejo-a passar, uma pequena, de vestido azul e andar calmo. Vem de lavar a roupa no lavadouro público, filha da terra, decerto com sabor ao sumo da uva e com a subtil firmeza de uma flor do campo.

És filha da terra
e em ti nasce o vinho e o girassol.
Em ti se abre a porta
da mais frugal claridade.
Em ti bebo a alegria de campos lavrados
e em ti escrevo o poema de um profundo
e partilhado silêncio.
Em ti fecundo
a solidão, e nenhuma palavra pronuncio.

É bom curtir-se uma de solidão. Não entendo as pessoas que ignoram o valor da solidão. Tanto se aprende e se ganha: serenidade, conhecimento de nós mesmos, distância do ruído e da multidão. A mim faz-me muito bem.
Tenho pensado seriamente fixar-me em Santa Ovaia. Não digo transformar-me em lavrador. Que o meu desejo é lecionar num liceu. Em Viseu, por exemplo. Esta pequena cidade, calma, com um desenvolvimento lento mas progressivo, oferece já boas perspetivas. Residiria na aldeia, onde é possível mais serenidade, e talvez dedicasse também algum tempo à agricultura. Ao mesmo tempo consagraria a minha dedicação à literatura. Por que não? Estou certo que este é o meu caminho.