Autor

David Duarte

09 de 04 de 2021, 19:36

Colunistas

Fragmentos de um Diário - 4 de julho de 1975

Questão? Será a democracia uma quimera, um ideal? Talvez não, se pensarmos em termos de um comunitarismo ou municipalismo.

4 de Julho de 1975
       
        Questões mais sérias, ou nem tanto: como anda a minha formação política? Extraio esta passagem de um meu trabalho para a disciplina de Introdução à Política: «Democracia: governo do povo. Pergunta-se: de que forma dominará o povo o poder político? Para além da democracia liberal, em que é duvidoso que os deputados selecionados por partidos representem verdadeiramente o povo, temos a democracia dita popular em que teoricamente o poder é dos trabalhadores. Teoricamente, porque apenas se verifica o domínio de uma elite do partido único sobre o Estado.
        Questão? Será a democracia uma quimera, um ideal? Talvez não, se pensarmos em termos de um comunitarismo ou municipalismo. Seria a partir deste húmus que a experiência política democrática ganharia um significado mais intrínseco.»

17 de Julho de 1975

        Os meus pais embarcaram há uma semana e um dia para Moçambique. Passei uns dias em Lisboa, que aproveitei para visitar a Fátima. Os meus tios levaram-me à estação de Santa Apolónia, convencidos da minha partida para Viseu, mas assim que se despediram, fui ter com ela. Já tínhamos tudo combinado. Ela tinha uma semana de férias e instalámo-nos na pensão dos indianos. Não podíamos abusar porque quase todas as despesas eram pagas por ela. Mas foi um tempo abençoado por um anjo benfazejo. Sem compromissos, sem contas a prestar das nossas horas, sem conhecidos a espiar-nos o exercício da nossa liberdade. Levantávamo-nos tarde, preguiçosamente tarde, e após um duche tomado a dois e a alegria a escorrer-nos pela pele, saíamos para as ruas de Lisboa, sem pressas, a passear o nosso amor e juventude. Eu dizia-lhe que a vida devia ser assim. Ela concordava, reforçando com a ideia que bastava tão pouco para se ser feliz. Para a felicidade é que se devia fazer uma revolução, rematou, só trabalharia quem queria, os que quisessem fazer carreira, ou ser ricos, os outros deviam ter um mínimo para viver dignamente. Disse-lhe que subscrevia tal ideia, a melhor que tinha ouvido nos últimos tempos. Ela sorriu, orgulhosa de me ter impressionado. Recitei-lhe, baixinho: «Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio, sossegadamente fitemos o seu curso e aprendamos que a vida passa…que a vida passa e não fica, nada deixa e nunca regressa, vai para um mar muito longe, para ao pé do Fado…». Ela reconheceu Ricardo Reis.