Autor

David Duarte

13 de 11 de 2021, 08:39

Colunistas

Fragmentos de um Diário - 6 de Janeiro de 1979

A quem darei o sobrante? Ou guardá-lo-ei para as minhas horas de solidão?

   Em Coimbra. Impressões? Gosto do ritmo moderado da cidade, das pessoas, do ambiente. Decerto me irei dar bem por aqui. É fácil a comunicação. Tenho alguns amigos e conhecidos.   Por cá ando, um tanto descomprometido comigo mesmo. Preocupa-me sobretudo estudar. Antigos problemas de ansiedade existencial não se têm por enquanto manifestado. Talvez se trate apenas de um interregno. Porque tenho consciência de uma obscura insatisfação.  Estou numa encruzilhada. É urgente definir-me. Há coisas ainda não muito claras, enigmas, buracos no caminho e na alma. Não pretendo matematizar uma conduta. A imagem de um menino sério, engravatado, positivista, não me interessa. Não quero um dogma, apenas conhecer-me e encontrar-me. A minha vida tem sido caracterizada por uma obsessão de algo ideal. Um dos efeitos desta psicologia reflete-se no menosprezo por momentos supostamente menos importantes da vida. Por isso, decidi mudar de paradigma: aprender a olhar e a viver a flor fugaz do instante. Aprender a sorrir. Não vejo razão para besuntar de porquês as coisas simples da vida.  Escrevo pouco. Insatisfaz-me a qualidade da minha poesia. A questão não se prende com o estilo. Mas com o conteúdo. Mas este também não se confunde com a expressão de queixumes ou sentimentalismos. Nem sequer com bandeiras políticas ou sociais. Mas, sendo assim, o que resta? Escrever sobre o quê? Talvez atravesse uma fase de estagnação/amadurecimento, que, mais cedo ou mais tarde, provoque uma metamorfose e aprenda a ser.
Queria dizer de uma solidão que me habita. Dizê-la a alguém. A quem? Só à Fátima, sim, só a ela, porque só ela compreenderia o alfabeto deste sentimento. Quando a conheci, vivia ela na solidão de si própria, dedicada ao trabalho para ajuda do sustento da família. Ia de casa para o emprego, do emprego para casa. E contava-me das longas horas de transporte público pelas ruas de Lisboa, sozinha, embrulhada no tecido dos seus sonhos, na sua manta de tristeza, irredutível aos apelos dos homens com quem se cruzava. Desejavam-lhe a beleza do corpo, a elegância do andar, o lume do olhar. Apenas eu lhe pedi água da sua alma, apenas eu a toquei com a ingenuidade da minha entrega. Apenas eu lhe dizia poesia e a convidei a partilhar da sua magia.
Onde estás, meu amor, com quem celebrei todo o ouro espiritual e sensual que me incendiava o corpo? A quem darei o sobrante? Ou guardá-lo-ei para as minhas horas de solidão?