Autor

David Duarte

05 de 11 de 2022, 08:59

Colunistas

Fragmentos de um Diário - 6 de Março de 1983

    A vida. O sentido da vida. O sentido da nossa própria vida.

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Tarde chata de domingo. Limitado à estreiteza desta vila. Gastei algumas horas no café, impaciente, aborrecido, sem vontade de regressar a casa, de ler ou ouvir música. Voltei a convidá-la. Ela veio. Se calhar, pelos mesmos motivos que os meus, por aborrecimento. É que os domingos abatem-se sobre mim de um modo brutal, seco, como se a lonjura do horizonte me anulasse qualquer identidade, me secasse interiormente.

Só o corpo da minha amiga me anima um pouco. E o seu riso, a sua boa disposição sexual. Parece não precisar de nenhuma metafísica para o gozo sensual. Este lhe basta. E, se calhar, tem toda a razão. E, enquanto ela me envolve, me abraça, me beija, esqueço eu também a filosofia ou a espiritualidade. Só depois voltam à carga os ideais, a ética do amor, a mística da sexualidade. Só depois, o peso do pecado de se fazer amor quase sem amor. Embora agora o faça com algum afeto. Cresce entre nós uma certa comunhão.

E aqui estou, a escrever, molemente, sem motivação. Com ela presente, não consigo escrever à Fátima. Tenho que esperar pela noite, quando estiver sozinho. As noites, guardo-as para mim, não as divido com ninguém. As noites, dedico-as ao meu amor, à Fátima. Passo as noites a escrever-lhe, por vezes bebo, e fumo sempre. Por agora, apenas registo no Diário estas notas, enquanto ela embala a sua sonolência numa nudez sem vergonha e sem preconceito. Mas como é bela e doce!

18 Maio 1983

Hoje acordei com saudade da Beira Alta. De respirar aquele ar leve de pinhais, terra molhada e serranias. Sinto com frequência uma certa estranheza de estar aqui, como se este lugar não fosse o meu, como se não fizesse sentido estar aqui.

        A vida. O sentido da vida. O sentido da nossa própria vida. Questões que sempre exercitaram uma certa dimensão do meu pensamento. Mas não o faço numa abordagem filosófica, mas sim num sentido mais existencial. Aliás, olho as coisas mais sob o ponto de vista da poesia que da filosofia. Prefiro Novalis a Hegel.
        E agora, com vinte e seis anos, que respostas dou àquelas questões? Não sei. Apenas reconheço que me agito nas águas de uma certa matriz católica.  Mas que sentido particular procuro conferir à minha vida?