Autor

David Duarte

30 de 04 de 2021, 18:41

Colunistas

Fragmentos de um Diário - 7 de Outubro de 1975

Parece que carrego a noite nos dentes do desespero e que mais não faço que pisar frutos podres nos corredores do tédio

7 de Outubro de 1975
Sento-me no silêncio e espero.
Enquanto a suavidade da fruta
cresce nas árvores do desejo efémero.
Acontece-me então nem sei o quê,
é uma alegria que me inunda sem porquê,
e nas águas do dia brinco com o infinito.
Louco me aqueço nas pedras do caminho,
sem nome, sem casa, sozinho.


Parece que carrego a noite nos dentes do desespero e que mais não faço que pisar frutos podres nos corredores do tédio. Por entre lâminas afiadas corro, cercado de venenosas flores, de nuvens em ferida, de mentiras, e as mãos já se perderam da festa do corpo em lume. No sonho mora a verdade, digo, ou és tu que dizes, já não sei. Para lá partimos, sem bagagens, apenas uma flor no olhar e um velho chapéu de palhaço. E nas areias um jeito leve desenhamos de pensar a vida, de olhar as pedras, de inventar o coração de um ventre. Desenhamos a geometria de uma viagem, Fátima, enquanto devagar tecemos os fios do amor.

Tanto busco a serenidade nestes dias de ausência. Nas mãos tenho um sol a crescer, com ele incendeio o altar da memória do teu corpo. Descalcei-me à entrada do templo do nosso amor, caminho agora em espelhos de fogo, impregnado de uma outra dimensão da loucura, enquanto largamente me resigno à fragilidade do ser. Irei ao encontro das origens, ao encontro do sono das florestas onde guardámos a arca das nossas dádivas. Por agora, espero, desamparadas as mãos que carregam as facas doentias da noite. E caminho, frágil, mas caminho, com os dentes a morder a solidão, sem respostas, a escutar os gritos lá fora que são o eco dos de dentro de mim. Imagino: preciso urgente de um telegrama azul.

Não penso no amor, é o amor que pensa em mim. Entendes, Fátima? Em que esquina do tempo nos perdemos? Preciso encontrar-te, hoje, agora, se não todo o sentido da vida se perde, todos os rios se desviam dos leitos, os continentes partem à deriva, as árvores desenterram as raízes e dos buracos desocupados sairão fantasmas loucos de luxúria e fome de sangue. Fantasma é a minha alma louca por ti, esfomeada do teu corpo e da luz que dele se irradia. Faço tudo que me mandam, mas nada faço do que me manda o coração. E o que este me pede, o que este me exige são as rosas que despontam no teu regaço, o jardim noturno no centro do teu corpo.