Autor

Jorge Marques

28 de 06 de 2024, 17:11

Colunistas

Ler pode fazer a diferença

Estamos a caminhar para a profecia do “Admirável Mundo Novo” de Huxley!

De passagem por Portugal o conhecido Michel Desmurget deixa-nos um conjunto de recados. Mostra-nos como a desigualdade linguística é a raiz da desigualdade escolar. Mas quem é este personagem? É um neurocientista que trabalhou nas mais prestigiadas universidades dos EUA, nomeadamente no famoso MIT. Hoje é diretor do Instituto de Ciências Cognitivas de Lyon e diretor de Investigação do Instituto Nacional de Saúde e Pesquiza Médica. Ficou conhecido quando publicou o livro “A Fábrica de Cretinos Digitais”, Prémio de Ensaio em França. Porquê estas referências? Porque se trata de um cientista em quem se pode confiar e porque continua a insistir no perigo dos ecrãs para os nossos filhos.
É verdade que se fala dos excessos e abusos dos ecrãs por parte das crianças e jovens, mas quase sempre acabamos na pergunta: Qual é a solução? Ele responde, ponham-nos a ler! Fala muito da leitura no seu livro, mas distinguindo sempre a leitura digital da leitura em papel. Numa pequena frase pode não haver grande diferença, mas num texto maior e mais complexo faz toda a diferença e a concentração é completamente diferente. O grande propósito do ensino é “aprender a aprender” e esse funciona melhor com a leitura. O Ocidente está a perder o barco da educação e com isso a economia, a democracia e outros valores humanistas. Falamos de milagres económicos na China, Taiwan, Singapura, Japão, alguns deles com muitos defeitos, mas que investem e dão grande importância á educação. Nesses países asiáticos já existem leis sobre o uso dos dispositivos digitais lúdicos em crianças e jovens. Essas leis contemplam multas pesadas e estabelecem limites á exposição aos ecrãs em idades entre os 2 e os 18 anos.

Os números que se conhecem do consumo recreativo do digital (smartphones, tablets, televisão, consolas de jogos e outros) pelas gerações mais novas é assustador. Diz-se que somadas todas as horas nos primeiros 18 anos de vida, isso poderá representar 30 anos escolares. Em Inglaterra, os diretores de muitos colégios já ameaçaram mandar a polícia e os serviços sociais a casa de quem deixa os filhos jogar vídeo jogos violentos. Em Taiwan, onde estão os estudantes mais bem-sucedidos do mundo, existe uma lei que prevê multas pesadas aos pais que exponham crianças com menos de 24 meses a qualquer dispositivo digital e aos que não limitam o tempo de utilização entre os 2 e os 18 anos.
Nos EUA, os quadros dirigentes das indústrias digitais como o falecido Steve Jobs patrão da Apple, mostram que estão preocupados com a necessidade de proteger os filhos dos instrumentos digitais que eles próprios comercializam. Em Silicon Valley, paraíso das empresas digitais, os seus filhos frequentam escolas caras e privadas de ecrãs. Há um sociólogo francês (Guillhaume Ernes) que diz: Eis a moral da história! Entreguem os vossos filhos aos ecrãs, os fabricantes dos ecrãs continuarão a entregar os seus filhos aos livros.
Na verdade, com tanta e tão divergente opinião, em quem acreditar? Será que alimentados com ecrãs os nossos filhos serão a geração mais inteligente de sempre ou a geração mais estúpida? Importa analisar e qualificar as provas de um lado e do outro e os eventuais interesses envolvidos. Provas que tenham consistência científica e médica! Destruir também alguns mitos e procurar saber qual é o impacto real da tecnologia digital.

Há pessoas que deviam ser ouvidas com mais atenção e que são aquelas que melhor conhecem os efeitos de tudo isto. Esses são os professores! Nos relatórios PISA diz-se: Os professores constituem o recurso mais importante nas escolas de hoje…Ao contrário do que muitas vezes se supõe, os sistemas de alto desempenho não gozam apenas de um privilégio devido aos professores. Eles também se construíram em virtude das escolhas políticas deliberadas e cuidadosamente implementadas ao longo do tempo. Curiosamente são esses sistemas de alto desempenho, aqueles que menos tem investido na transição e equipamentos digitais nas suas escolas. Esses estudos chamam também a atenção para a necessidade de formação e pedagogias digitais por parte dos professores.
Uma análise pormenorizada dos dados PISA apresenta uma hipótese alternativa. Diz que é preciso construir um entendimento profundo, conceptual e de ordem superior, que requer interações intensivas entre professor e aluno...E que a tecnologia por vezes distrai deste valioso envolvimento humano. Mas qual é o problema tão difícil e que só a tecnologia pode resolver? É que em todo o mundo e nalguns países de forma mais acentuada há falta de professores. Toda a sua gestão tem sido mal feita, desde os níveis salariais ao reconhecimento estratégico da sua função. Face a esta incapacidade, a chamada revolução no ensino facilita o recrutamento de professores menos qualificados e que se limitarão a ser mediadores de um saber feito de programas digitais.

Nos EUA (Flórida e Idaho), os estados que pior pagam aos professores tem como resultado as piores taxas de graduação no ensino secundário. Claro que recrutar professores desta forma é difícil, porque também havia uma lei que limitava as turmas a 25 alunos. Qual foi a solução? Criaram-se aulas digitais onde os alunos aprendem sozinhos diante de um computador e as turmas deixaram de ter limites. O que nos diz Michel Desmurget? Acrescenta um outro problema, a desigualdade! Porque quando a criança chega á escola já há diferença entre aqueles que tiveram ou não uma relação com a leitura. Os que leram conhecem mais palavras e quanto mais palavras mais se aprende.
Não somos uma sociedade inteligente, porque não percebemos que a educação não é um custo, mas um investimento! Porque todos os estudos nos dizem que o crescimento da economia e saúde dependem da literacia, onde a leitura e escrita tem um valor determinante. Não é a mesma coisa ler, teclar ou desenhar uma palavra, o cérebro regista isso de forma diferente. Mas há gente bem-sucedida que nunca leu um livro? É verdade, mas tem menos linguagem, cultura, conhecimento da história e do mundo. Menos tolerância, empatia, pensamento critico e humanidade. O atual panorama do que está a acontecer nos movimentos sócio políticos da Europa e EUA são disso um bom exemplo.
Estamos a caminhar para a profecia do “Admirável Mundo Novo” de Huxley! De um lado a classe minoritária de crianças dotadas de sólido capital humano, linguístico, emocional e cultural (Alfas) e do outro o grupo maioritário de desfavorecidos (Gamas), privados de instrumentos fundamentais de pensamento e inteligência…