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Matar o mensageiro

 Matar o mensageiro
23.10.21
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1. Antes de começar a escrever este Olho de Gato, fiz o seguinte post no Facebook:
Conta-se que em Viseu, nos anos de 1960, no tempo em que um aparelho de televisão custava um ano de trabalho, um farmacêutico, zangado com o que estava a ver, deu um tiro no aparelho.
Agora, todos os dias, há sempre alguém, nas redes sociais e não só, a “dar um tiro” ou num repórter ou num articulista ou num humorista ou num professor ou num…
Todos os dias há alguém que se acha no direito de querer “cancelar” alguém só porque não gostou do que esse alguém disse.

Os comentários àquela publicação reforçaram a minha convicção: esta história aconteceu mesmo, não é um mito urbano. Irritado com mais um “pedimos desculpa por esta interrupção, o programa segue dentro de momentos”, que acontecia muito nos primeiros tempos da RTP, o homem esfandegou o aparelho com um tiro.

Elvis Presley também era de gatilho fácil sobre a “caixa que mudou o mundo”. Isso era tão costumeiro que até já se prevenira e tinha sempre televisões suplentes na cave da casa.
Uma vez, calou à bala um aparelho onde estava a cantar Robert Goulet. Gritou o rei do rock enquanto puxava o gatilho: “that jerk’s got no heart!” (em portoguês: “aquele morcão não tem coração!”).
Durante o tempo em que Elvis esteve no serviço militar, Goulet tinha tentado catrapiscar-lhe a namorada, a bela Anita Wood. É capaz de ter sido isso: ciúmes retrospectivos descarregados na pantalha.

2. As pessoas não gostam de notícias más e quem as dá corre riscos.
O latinório ne nuntium necare (não mate o mensageiro) remete-nos para o tempo do rei persa Dario III que matou com as próprias mãos Charidemos quando este, vindo do campo da batalha de Issus, o informou que os seus exércitos tinham sido derrotados pelos macedónios de Alexandre, o Grande.
É isso que torna o jornalismo uma profissão perigosa em muitas partes do mundo. Entre nós, felizmente, as coisas são menos drásticas. As zangas ficam-se pelas redes sociais e pelas caixas de comentários dos media, onde habitam uns guerreiros do teclado estranhos que, como diria Pedro Almodóvar, estão sempre “al borde de un ataque de nervios”.
Atenção, nestes tempos de “cancelamento”, toda a gente está sujeita a sarilhos. Basta um tweet “mal dado”, uma palavra proibida, uma opinião que ofenda uma tribo identitária qualquer e fica tudo encrencado.
Os humoristas são uns “cristos”, que o diga Dave Chapelle que viu o seu genial “The Closer” em risco de ser retirado da Netflix por causa de uma horda de trans ofendidos.
Nas universidades americanas, os professores vivem aterrorizados com os “wokes” que se juntam em catervas e usam o Twitter como uma arma de destruição maciça.
Que o diga o compositor e professor Bright Sheng que acaba de ser despedido da Universidade de Michigan porque, numa aula sobre Shakespeare, apresentou “Othelo”, um filme de 1965, em que o grande actor Laurence Olivier faz blackface (aparece com a cara pintada de negro). Pediu desculpas, embora não se perceba que mal é que ele fez. De nada lhe valeu: foi posto no olho da rua.

 Matar o mensageiro

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