Autor

José Mateus

15 de 01 de 2022, 07:33

Colunistas

Uma experiência de Natal

Fiquei intimidado com a ideia de desenhar um presépio. Talvez por pensar que as pessoas esperam uma representação mais ou menos realista

O Natal está associado ao presépio, que se faz ano após ano, tanto em casa como no espaço público. Todos recebemos postais com presépios e apreciamos a arte de muitos artesãos que os interpretam com o seu estilo pessoal. No Museu Almeida Moreira, em Viseu, numa exposição com presépios vindos de todo o mundo, é possível observar como o mesmo acontecimento – o nascimento de Cristo – é representado de formas tão variadas de acordo com as zonas do globo e as culturas locais. Já recebi postais com figuras minimalistas desenhadas com um simples traço de caneta, a pinturas barrocas com imagens gordinhas e roupagens preciosas. Costumo transformá-los em marcadores de livros, e assim sempre que encontro um deles no meio de um livro, lembro-me de quem o enviou.

Embora desenhe regularmente, nunca desenhei nenhum presépio. Mas este ano, uma sequência de imprevistos levou-me a arriscar. A história começou há alguns anos atrás, ainda vivia no Porto. Um amigo do tempo do liceu pôs-me em contacto com uma congregação religiosa – as Missionárias Dominicanas do Rosário – que tinham um projeto para realizar e necessitavam de apoio criativo e design. Queriam, de certa forma, homenagear as irmãs missionárias mais idosas, regressadas de África e de outros continentes e que agora estavam em Portugal, num merecido repouso, com histórias de vida incríveis para contar. Visitei-as em diversas localidades, ouvi as suas histórias, fotografei os seus álbuns fotográficos, e com todo esse material criámos o projeto “Viver para os Outros” – histórias de missão. (https://missionariasdominicanas.org/viver-para-os-outros-historias-de-missao/) Por lá passam acontecimentos da guerra em Angola, acabada há pouco tempo, histórias de violência doméstica, crianças abandonadas em teatros de guerra, filhos separados dos pais, pela lepra, até conflitos com a polícia no Bairro 6 de Maio, na Amadora, em Lisboa, habitado pela comunidade Cabo Verdeana, e onde a congregação presta apoio social.

Pois passados mais de 10 anos, o mesmo amigo voltou a contactar-me e de novo a por-me em contacto com as mesmas irmãs, que agora tinham um projeto diferente. Estavam a comemorar uma data especial: 100 anos de vida plena em Deus (uma forma diferente de dizer, da morte terrena), do seu fundador, Monsenhor Zubieta Y Les. Um dominicano muito especial, escolhido para iniciar um novo projeto missionário na selva amazónica do Peru, um território enorme. Ramón Zubieta foi um missionário aberto, uniu fé e promoção humana, quiz sentir e conhecer a cultura das comunidades que encontrou, dedicou muito tempo a conversar e a aprender as suas línguas e costumes. Promoveu a saúde, a educação e a melhoria no cultivo. Deu uma atenção especial à situação das mulheres, o que o levou a pensar que para essa tarefa necessitava de Missionárias. Tal valeu-lhe muitas críticas, pois consideraram tal ideia, imprudente e irrealista. Contudo, ele não desistiu e, por isso veio a Espanha, a um Convento de clausura, em busca de religiosas para esse ousado projecto. Em 1918 fundou, no Peru, juntamente com a Madre Ascensão Nicol, uma das Irmãs que foi de Espanha, a Congregação das Missionárias Dominicanas do Rosário. O seu desejo era promover a mulher nativa, por considerar que ela era a base da família e da sociedade, e pensava que só com as Missionárias o poderia conseguir. (https://missionariasdominicanas.org/ )

Pois voltámos a conversar. Para meu espanto, o Bairro 6 de Maio, onde eu tinha estado e fotografado anteriormente, entrado nas casas dos seus habitantes, já não existe, embora as irmãs ainda lá tenham a sua associação social. Nas notícias do seu site descubro que o documentário “Os Herdeiros do Bairro”, da ONGD portuguesa HELP IMAGES, àcerca do fim do bairro, conquistou prémios nos Estados Unidos (https://vimeo.com/350383578 ). O meu amigo, que é especialista em estudos de opinião, conduziu um estudo inovador na comunidade mais ligada às irmãs, a partir da história de vida de Monsenhor Zubieta. E com os resultados, organizámos uma exposição. Que incluiu uma missa, onde se integrou informação recolhida dos testemunhos de alguns participantes no estudo. Não fui nem à exposição nem à missa, mas disseram-me que foi um sucesso. E as irmãs, de tão satisfeitas que estavam, tinham mais um pedido (muito especial) para me fazer. Gostavam muito que lhes fizesse o postal de Natal de 2021.

Fiquei intimidado com a ideia de desenhar um presépio. Talvez por pensar que as pessoas esperam uma representação mais ou menos realista, e esse não é o meu tipo de desenho. Claro que o poderia fazer, afinal isso aprende-se no curso de belas-artes, mas não me parecia boa ideia. Queria manter a minha forma de desenhar e, influenciado pela história de Ramon Zubieta, celebrar a América Latina, e foi isso que fiz. Senti-me um pouco estranho quando, mais tarde, ao visitar o site das Missionárias Dominicanas do Rosário, me deparei logo no início, com o meu postal de Natal e o presépio que desenhara. Não estava à espera de tão grande destaque. Mas agora já estava, tinha desenhado o meu primeiro presépio. Já só me faltava ir ao Peru!