Paulo Lopes

31 de 03 de 2021, 07:31

Cultura

Do que sentimos mesmo falta?

Crónica de Patrícia Portela, diretora artística do Teatro Viriato, no podcast 'Boca a Boca'.

Podcast Boca a Boca

Uma vez ouvi um filho perguntar a um pai:
- Quando é que isto tudo melhora, pai?
E o pai, sábio, respondeu-lhe:
- Quanto te habituares a isto.

Estamos num momento em que é fácil desanimar.
Ainda não estamos suficientemente longe para nos esquecermos de como tudo se passou, mas também não estamos ainda tão perto do fim para conseguirmos aguentar esta hercúlea tarefa de caminhar sobre uma prolongada dúvida. Perguntamo-nos cada vez mais sobre o que de facto faz sentido e para onde caminhamos. Perguntamo-nos: O que não vai regressar? O que mudará para sempre? Do que estamos dispostos a abdicar? Do que sentimos verdadeiramente falta? Será de ir ao cinema? De ir ao teatro? Ficar na rua até às tantas? Ir a um restaurante comemorar um aniversário? Será de beber um copo com os amigos? Ir às suas casas? Conhecer gente nova? Abraçar a família? Passear simplesmente nas ruas, encontrando outros, falando com outros, sem pressão de horário nem recolhimento noturno? Teremos saudades de sentir a ilusão de que controlamos o destino? Que temos na mão a sorte? Quereremos tudo de volta ou há coisas que nos fazem mais falta do que outras?
Estamos em pleno mar alto. Não há terra à vista. Tentamos fazer o exercício de organizar o futuro próximo. Fazer planos...
Quando terminar esta quarentena, vou visitar o meu tio.
Quando terminar este suplício, vou andar pela praia horas a fio. Quando terminar este ano vou … vou… e vou…
Fico em casa a ouvir um concerto único de um quarteto de cordas. Os músicos estão sozinhos, fechados num teatro, frente a uma plateia vazia, mas com uma garra, como se ali estivesse uma multidão. E só para que eu veja do outro lado da linha, em casa, no meu ecrã de televisão ou de computador. E penso: Caramba! E se esta pandemia nos tivesse calhado num tempo sem internet? E se ainda vêm outras onde não há possível comunicação? Sinto-me afortunada! Há quem não desista! Há quem continue a tocar todos os dias, a treinar todos os dias, a compor todos os dias, a desenhar todos os dias; há quem nos relembre que o ser humano sempre inventou a roda, vezes sem conta, e não será agora que não vai inventar a maneira mais delicada e airosa de se manter vivo, criativo e generoso para com os seus. Pego no programa do Festival Internacional de Música da Primavera de Viseu, organizado pelo Conservatório Regional de Música de Viseu Dr. José Azeredo Perdigão, e vejo a Diana Botelho, o Manuel Araújo, a Orquestra Filarmonia das Beiras, a estreia do Ricardo Toscano Double Trio. Alguém mantém o mundo vivo e a girar, alguém mantém a sopa primordial aquecida para que se continue a criar, a provocar a mudança, a encher de música o ar e a teimar em fazer-se presente, para não nos esquecermos do que nos faz mesmo falta.
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Patrícia Portela, diretora artística do Teatro Viriato