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17 de 07 de 2021, 15:37

Cultura

Panela de Ferro (capítulo X)

- Lêvide més, tornarim dõs…

Pompeu José

Fotógrafo: Igor Ferreira


Capítulo I
 
A criada velha deitou uma mão cheia de sal na panela de ferro onde fervia a lavagem para o porco  e de imediato um relâmpago rasgou o céu…
A criada parou e um segundo depois um trovão abanou o chão e ribombou por dentro da cabeça da velha. 
Um bando de pássaros voou com grande algazarra enquanto todo o conteúdo da panela se espalhava pelas paredes e pela chaminé forrando tudo com o alimento do animal. 
A velha ergueu os braços ao céu e numa linguagem antiga bradou:
 
- Lêvide més, tornarim dõs…
 
E repetiu, uma e outra vez, cada vez mais forte, cada vez mais fora de si… 
Em êxtase, e sempre bradando a mesma frase, entrou no curral do porco e com um pedaço de ferro em brasa tirou a vida do animal com um só golpe mesmo no meio dos olhos.
Parou a ladainha, o canto transformador e, lívida e já sem vida, caiu no chão no meio do estrume, ao mesmo tempo que toda a família que dormia na quinta se esvaia em sangue, finalizando exangues no meio dos lençóis que, vermelhos como bandeiras, amortalhavam os corpos.
Uma angélica figura desceu do céu sobre a horta e ceifou todos os legumes que esfregou pelo corpo nu. 
Os pássaros regressaram a medo, enquanto o anjo esfregava o corpo, e começaram a entoar um canto desesperado e gritante que acordou toda a aldeia.
A panela de ferro estava incandescente no meio da lareira e, num golpe de magia, transformou-se num pequeno animal de fogo que ganindo fez parar todos os habitantes que se aproximavam do portão embrulhados em mantas ou nos roupões vestidos à pressa.
O anjo montou o animal e rodopiando sobre as pessoas transformou-as em cinza. As cinzas mantiveram-se por um momento na forma de cada um mas, como que sopradas por alguém, logo se desfizeram, caindo no chão, onde apenas se viam agora 23 pequenos montes, lembrando pequenas fogueiras apagadas à pressa e donde ainda se desprendia um pouco de fumo.
Anjo e animal partiram e um silêncio de chumbo tombou sobre a aldeia durante séculos. 
Só passados mil duzentos e trinta e dois anos um barco aportou à aldeia. Uma pequena embarcação com 5 marinheiros e um cão. 
O comandante desceu a terra e o que viu foi tal e qual como tudo tinha ficado há muito tempo atrás. 
Vinte e três montes de cinza fumegante, a horta destruída, um curral com um porco caído e um ferro espetado entre os olhos, uma velha deitada, branca como a cal e que parecia uma estátua de mármore…
Os marinheiros e o cão foram seguindo o capitão e testemunhando tudo. Quando entraram na casa, a cozinha era toda ela uma pintura de sopa, e ao subirem aos quartos, os lençóis ensopados em sangue embrulhavam esqueletos humanos cobertos por penas de pássaros.
Os homens ajoelharam instintivamente e sem saberem porquê começaram, em uníssono, uma estranha lengalenga:
- Lêvide més, tornarim dõs…
 
Capítulo II
 
 
Lipo faz os trabalhos de casa na mesa da cozinha. A professora pediu uma cópia de um texto estranho com frases numa língua que o garoto desconhece.
- Ti’ Zé, porque é que temos de copiar coisas que não entendemos?
O Tio Zé responde-lhe enquanto faz, com a navalha, um barquinho de um pedaço de carcódia:
- Ao copiar, entendes…
- Mas não percebo o que escrevo! Como é que entendo?
- Sabes que as palavras são as coisas antes de as coisas serem coisas?
- Não me baralhe mais do que eu já estou…
- Vá, faz a cópia para irmos passear.
- Ainda vou demorar. 
A professora quer que eu escreva uma das frases uma data de vezes. 
- Para aprenderes…
- Para aprender não, para me chatear.
- Copia mais três vezes e depois vamos. Mas escreve com calma e diz a frase alto enquanto escreves.
- Mas eu nem sei como se lê…
- Lê como achas que é. Com calma, três vezes.
Tio Zé vai acabando o barco de corcódea. Faz-lhe um pequeno mastro e uma vela com a prata do cigarro.
Enquanto Lipo, depois de olhar sério para ele, recomeçava a cópia. Escrever três vezes a estranha frase enquanto a soletra em voz alta:
- Lêvide més, tornarim dõs…
 
Na primeira vez sentiu um arrepio, mas não ligou. Na segunda achou que estava noutro lugar. Ao terminar viu-se frente a um espelho enorme. E do outro lado o Tio Zé fazia-lhe sinal para que fosse ter com ele. Lipo não sabia o que fazer, assustado arrumou as coisas na mala da escola e quando levantou os olhos estava tudo normal.
Tio Zé tinha numa mão o barquinho já pronto e na outra um sacho. Iam regar, pensou Lipo. Estava um fim de tarde luminoso.
Quando chegaram à horta o Tio Zé ligou o motor e abriu o primeiro rego para que a água corresse. Deu o barquinho a Lipo para que ele o colocasse na água e o fosse guiando na viagem pela horta.
- Porque é que não temos mar na aldeia? Perguntou Lipo.
- Já tivemos Lipo, já tivemos…
- Está a gozar comigo. Não tivemos nada. Estamos muito longe do mar…
- Pega no barco e vem comigo!
Lipo assim fez. Tio Zé desligou o motor de rega e pegou na mão de Lipo, repetindo:
- Vem comigo…
Curioso, Lipo seguiu o velho até ao alto do monte que ficava ainda longe da aldeia. Era quase noite quando chegaram. O sol escondia-se para lá do monte num até amanhã 
que se repetia diariamente há milénios.
Entraram numa pequena gruta, o velho acendeu uma tocha que estava pendurada na parede, partiu um pedaço da parede da gruta com uma pedra e mostrou ao gaiato. O pedaço era feito de conchas e búzios e estrelas-do-mar, um aglomerado de fosseis marinhos.
- O mar já aqui esteve… ou esta terra já esteve no mar…
E o velho, como um arqueólogo experiente, foi retirando com cuidado a terra que envolvia os fósseis e separou três conchas, três búzios e três estrelas-do-mar. E falou do tempo em que aqueles seres eram seres vivos…
“É difícil imaginar o tempo em que o nosso mundo era só dos animais e nós ainda não existíamos. Parece que o mundo não faria sentido só com bichos… mas fazia. O mar cobria quase tudo como se o dilúvio tivesse acontecido nos primórdios. A bicharada vivia quase toda na água ou no ar, ou na água e no mar como os peixes voadores…”
E o velho foi contando a Lipo a sua história do princípio do mundo. O miúdo ouvia fascinado e, sem dar por isso, adormeceu.
E teve o sonho mais lindo de sempre: “As tartarugas eram enormes, muito, muito grandes, deslocavam-se devagar e suportavam, cada uma, um continente no dorso…”
 
Capítulo III
 
Eram dez tartarugas, portanto eram dez continentes. Em cada um dos continentes vivia uma espécie animal nas mais variadas formas. 
Os animais eram estranhos… Uns muito grandes e outros muito pequenos. Outros ainda microscópicos. Mesmo dentro de cada espécie. Os grandes eram oito. Um deles, um monstro enorme em que se reparava logo à primeira vista, e do qual só havia três exemplares. 
Estes monstros enormes pareciam prédios de dez andares com vida própria. Quando começaram a caminhar fizeram um barulho tão grande que Lipo acordou do seu sonho.
Continuava na gruta onde tinha adormecido. Havia imensas bolas a pairar no espaço. Umas de água, outras de fogo, outras ainda dos mais variados materiais e dos mais variados tamanhos. Eram os restos do sonho.
O velho dormia ainda.
- Ti’ Zé, qual é a diferença entre descoberta e invenção?
O velho sorriu, abraçou o rapazito e disse:
- Descoberta é tudo o que vês pela primeira vez. Invenção não existe...
- Isso não pode ser assim tão simples…
- Pronto, então é assim: descoberta é quando percebes o que vês. E de cada vez que olhamos é sempre uma primeira vez. Melhor, descoberta é quando percebes o que sentes. E de cada vez que sentes é sempre uma primeira vez. Invenção não existe, existe imaginação…
Os fósseis (as três conchas, os três búzios e as três estrelas-do-mar) estão ainda no centro da gruta e começam a brilhar como se tivessem luz própria. Elevam-se um pouco no ar e, indicando-lhes o caminho, vão saindo da gruta.
Lipo e Ti’ Zé saem com eles…
E logo do lado de fora da gruta estava o mar. Um mar calmo e sereno. E atado a uma pequena árvore, um pequeno barco a remos.
- Vamos viajar? – perguntou Lipo.
- Sim! – respondeu o Tio Zé.
E Lipo encaminhou-se para o barco. Mas o Tio Zé disse:
- Não vamos de barco. Vamos pelo mar. Por dentro do mar.
Os dois corpos mergulharam no mar mas rapidamente se deram conta de que voavam. No pequeno bote seguia o anjo.
Por cima daquele mar que era agora um céu. Um céu azul no qual, o velho e o rapaz, voavam por dentro… do mar.
O anjo, no barco, remava e sorria. Eles deixaram de pensar, apenas voavam. Brincavam de pássaros.
Passado um tempo avistaram algo ao longe. Era uma panela de ferro. Voaram na sua direção e quando chegaram perto, sem se aperceberem, disseram num murmúrio:
- Lêvide més, tornarim dõs…
E repetiram, uma e outra vez. Nesse instante a panela voltou a ser pássaro e, arrastando-os, subiu na direção do pequeno bote onde seguia o anjo. Este montou o pássaro e voltou a partir.
Lipo e Tio Zé remaram toda a manhã até que chegaram à aldeia. Dirigiram-se a casa e na lareira fervia uma cheirosa sopa na panela de ferro. Olharam-se e sorriram. O velho serviu a sopa e, enquanto a comiam deliciados, Lipo disse:
- Avô!
O velho arregalou os olhos e exclamou: - O quê?!
- Vou passar a chamar-te avô, há problema?
Tio Zé emocionado tirou o relógio de bolso que andava sempre preso por uma corrente ao colete e entregou-o a Lipo.
- Toma, é teu. São horas de perceberes o que é o tempo…
Lipo abraçou o velho: - Obrigado, avô!
- De nada, neto.
Enquanto o tio Zé explicava a Lipo como funcionava o relógio repararam que o caderno da escola continuava aberto sobre a mesa na página onde o rapaz tinha copiado a estranha frase: “Lêvide més, tornarim dõs…”
Sem dizer palavra Tio Zé arrancou a folha e atirou-a ao lume. As letras refulgiram um momento antes do papel ser devorado pelas chamas.
Acabaram a sopa em silêncio. Lipo olhou deslumbrado o relógio e perguntou: 
- Avô, o que é o tempo?
 
Capítulo IV
 
O avô, ao ouvir isto, afastou a cadeira e pôs-se de pé.  Lipo reparou na calma com que o avô levantou a mesa, colocou a louça no lavatório, sacudiu a toalha e, ainda mais demoradamente, enrolou um cigarro e saiu.  Lipo saiu com ele. Sentaram-se no barco que estava ancorado na areia. 
O velho acendeu o cigarro e puxou umas quantas passas. Lipo aguardava ansiosamente a resposta. Quase a acabar o cigarro o avô falou.
- É inexorável! 
Aquela palavra demorou a entrar no raciocínio de Lipo. Tio Zé percebeu isso e continuou:
- Sabes qual a é velocidade máxima a que pode andar um trator?
Meio envergonhado Lipo respondeu:
- Não…
- 30 Km por hora.
- E sabes que velocidade pode atingir um avião?
Isto ele sabia…
- Um avião supersónico anda a mais de 343 metros por segundo que é a velocidade do som. É por isso que se chama supersónico. Ultrapassa a barreira do som. E a luz anda a 300.000 Km por segundo…
O avô interrompeu-o…
- O homem anda muito mais devagar… Quando eu saio de casa e vou a pé até ao alto do moinho demoro uma hora. E se quiser ir visitar alguém à serra, e for de trator, levo uma tarde. Mas isso é o tempo que eu gasto. Nada muda em relação ao “tempo”. Ele continua a passar igual, sempre igual. Esteja eu a correr, a andar de avião ou deitado a dormir. Ele passa sempre igual. Inexorável! Nós só pensamos no tempo que gastamos para percorrer distâncias, não pensamos no tempo de vida que vai passando, inexorável…
Lipo engoliu em seco e, assim do nada, perguntou:
- E a minha mãe?
O velho sentiu um trovão ribombar dentro da sua cabeça. Era a memória a recusar-se voltar atrás… A não querer recuar no tempo…
Tio Zé saiu do barco apanhou uns paus e acendeu um pequeno lume na praia. O sol escondia-se no horizonte como se não quisesse assistir ao desenrolar da cena. Lipo aproximou-se do lume e o avô abraçou-o. Acomodaram-se e, algum tempo depois, enquanto a noite caia e o sono começava a dominar o corpo, Lipo repetiu:
- E a minha mãe?
- Assim como o tempo é inexorável, a natureza é implacável.
Tudo tem um princípio e um fim…
- Eu sei avô, não é isso.
E aconchegou-se ainda mais no colo do avô.
- Sabes avô, eu todos os dias sonho com a minha mãe. Digo as palavras mágicas e ela aparece. É um anjo que voa num pássaro de fogo. E fala comigo, e eu com ela. Mas agora tu queimaste a folha com as palavras escritas…
Tio Zé interrompeu-o.
- Não sabes as palavras de cor?
- Sei.
- Então, se as repetires, o sonho volta a aparecer …
O escuro da noite tinha tomado conta de tudo. Apenas se via a luz da pequena fogueira. Aninhado e já meio a dormir, Lipo disse as palavras dentro da sua cabeça.
Tio Zé olhava-o cúmplice…
Um mar de gente invadiu a praia. Havia festa na aldeia. A música animava a dança coletiva e todos sorriam de felicidade deixando os corpos mover-se ao ritmo da melodia que todos entoavam em coro num abraço comunitário.
Num planeta distante havia um ponto de luz. Nessa bola distante uma figura angelical montou um pássaro de fogo e, riscando o céu, dirigiu-se à aldeia. O povo que cantava e dançava abraçado, parou e ficou imóvel, hipnotizado, enquanto Lipo sorria e contava à mãe que o avô lhe tinha oferecido o relógio de bolso.
Ninguém ouvia nada do que diziam. Apenas o Tio Zé se apercebeu que o tempo tinha parado por um instante…
 
Capítulo V
 
Um mar de gente invadiu a praia. Havia festa na aldeia. A música animava a dança coletiva e todos sorriam de felicidade deixando os corpos mover-se ao ritmo da melodia que todos entoavam em coro num abraço comunitário. Num planeta distante havia um ponto de luz. Nessa bola distante uma figura angelical montou um pássaro de fogo e, riscando o céu, dirigiu-se à aldeia. O povo que cantava e dançava abraçado, parou e ficou imóvel, hipnotizado, enquanto Lipo sorria e contava à mãe que o avô lhe tinha oferecido o relógio de bolso. Ninguém ouvia nada do que diziam. Apenas o Tio Zé se apercebeu que o tempo tinha parado por um instante…
E deixou-os conversar durante muito “tempo”. Tudo parado. 
Tio Zé tinha consciência que, dentro da cabeça de Lipo, se desenrolava uma conversa há muito desejada. Uma conversa que fazia todo o sentido para Lipo pois ele acreditava no que o avô sempre lhe dissera: “…quando as pessoas morrem passam a ser mais uma estrela no céu…” No final da conversa mãe e filho abraçaram-se. Tio Zé apenas ouviu a frase de despedida.
- Dá um beijo por mim, ao teu avô – disse a mãe. E voltou a partir, montada no pássaro de fogo.
Nesse instante a festa na aldeia recomeçou e os corpos voltaram a dançar juntos num grandioso abraço comunitário. Lipo aproximou-se do avô e deu-lhe um beijo carinhoso e disse num sussurro:
- É da minha mãe…
Tio Zé agarrou-o e entrou na dança com ele às cavalitas. A música e a dança redobraram de ritmo e Lipo foi passando por cada um dos habitantes da aldeia num rodopio inebriante que o deixava tonto mas infinitamente feliz e agradecido. Uma roda-viva que todos partilhavam com uma alegria contagiante. Quando a música parou todos riram à gargalhada e bateram palmas finalizando a festa com uma apoteose grandiosa.  Em uníssono elevaram Lipo por sobre as suas cabeças como num ritual de passagem.  O menino deixava de ser criança, passava a ser crescido.
Ainda tonto, Lipo voltou para junto do avô que, com um sorriso largo mas lacrimejante, olhava, um por um os habitantes da aldeia, num agradecimento sincero pelo ritual que todos tinham realizado. Avô e neto caminharam em silêncio até casa. Um ponto brilhante cintilava num planeta distante.
Quando entraram em casa, ao passar pelo espelho da entrada, o avô perguntou:
- Se te olhares no espelho, o que vês?
Lipo sorriu, esta pergunta era fácil.
– Vejo-me a mim mesmo… - disse,
- E quem és tu?
Lipo não respondeu. Parecia que não tinha sido o avô a fazer esta pergunta, mas que esta tinha sido feita por ele próprio…
- Já pensaste que se olhares para ti e ampliares muito a tua imagem, mesmo muito, vês um pequeno universo de bolas que giram em torno umas das outras…
Lipo olhou admirado para si próprio e começou a ampliar a imagem, muito, mesmo muito, e reparou que havia espaço vazio em torno da imensidão de bolas que compunham o seu corpo. O avô tinha razão, visto assim tão ampliado o seu corpo é um pequeno universo de bolas girando em torno umas das outras.
Fascinado, viajou por dentro de si próprio e chegou junto do pequeno ponto brilhante, que cintilava numa pequena partícula do seu imenso coração, e aconchegadinho a ele, adormeceu.


Capítulo VI
 
O avô tinha razão, visto assim tão ampliado o seu corpo é um pequeno universo de bolas girando em torno umas das outras. Fascinado, viajou por dentro de si próprio e chegou junto do pequeno ponto brilhante, que cintilava numa pequena partícula do seu imenso coração, e aconchegadinho a ele, adormeceu. E sonhou.
Era um feto no ventre de sua mãe. Mergulhado no líquido amniótico sorria. Mas começou a sentir um aperto estranho, muitos movimentos, o corpo da mãe estava muito agitado, nunca tinha acontecido antes… de repente o líquido começou a desaparecer. Perdeu a noção do tempo. A determinada altura sentiu um aperto enorme, uma luz intensa feriu-lhe a vista. Assustado, chorou… Lipo acordou coberto de suor. Arfava… Sem perceber muito bem o que tinha acontecido levantou-se envolto na roupa da cama. O avô estava ainda ao lume a fumar e a beber o último copo de vinho. Quando o viu abraçou-o e aconchegou-o no colo.
Lipo foi acalmando até que contou ao avô:
- Avô, sonhei que nasci. Tive medo. Podemos lembrar-nos do nascimento?
- Não, acho que não. Foi imaginação tua. A memória não nos guarda o nascimento. 
- Porquê?
- Ou porque é tanta informação que a memória ficava logo cheia ou porque o nascimento é tão estranho e assustador que vale mais não nos lembrarmos do acontecimento. Não sei...
- Pode ser isso…
- Eu lembro-me bem…
- Do teu nascimento?
- Não, do teu. Estive a segurar a tua mãe enquanto a tua avó te ajudava a nascer. Elas não queriam que eu ali estivesse mas eu quis assistir. Já tinha visto nascer alguns animais, mas contigo foi diferente, foi muito mais intenso. 
O avô acabou o vinho, atirou a pirisca para o lume e fez menção de o ir levar para a cama mas Lipo aconchegou-se ainda mais no colo do avô. Tio José percebeu. Ficavam mais um pouco ao lume. O moço acendeu a ponta de uma caruma e fingiu que fumava, o avô riu. Depois apagou a pequena chama e volteou o pequeno morrão no ar fazendo desenhos de fogo. Lembrou-se que quando era mais pequeno e fazia aquilo o avô ralhava sempre: 
- Se brincas com o fogo fazes xixi na cama… 
Hoje não disse nada. Contemplou fascinado os movimentos da pequena brasa na ponta da caruma. Ele próprio acendeu uma e desenhou no ar. Lipo achou que ele estava a tentar escrever com o fogo as palavras mágicas. Mas não tinha a certeza. Lipo desenhava corações e estrelas enquanto o avô tentava escrever. Quando pararam o rapaz reparou na panela de ferro onde cozinhavam para o porco e, quase sem querer, preguntou:
- Avô, não te sentes mal quando matas o porco, não tens pena dele?
- Não me sinto mal mas tenho pena dele. Durante um ano dou-lhe comida limpo o chiqueiro, trato dele… Mas é para o matar que o crio com todo o carinho. Não sei explicar. E de cada vez que durante o ano a seguir à sua morte como um pedaço da sua carne faço-o com respeito, lembro-me do seu nome. Entretanto já estou a criar outro para matar no ano seguinte.
Tio José levantou-se. 
- Onde vais avô?
- Já venho.
Pegou no copo e foi à loja. Lipo sentou-se novamente à espera. Passado pouco tempo o avô entrou na cozinha com um pedaço de pão, um copo de vinho e uma lasca de presunto. Partiu respeitosamente o pão e o presunto ao meio e deu uma parte ao neto.
- Saboreia esse pedaço de perna do Latagão, era como se chamava.
Lipo sorriu e assim fez. Soube-lhe bem. Mesmo muito bem. Quando acabou o avô passou-lhe o copo de vinho. Lipo bebeu um golo. Era a primeira vez. E também lhe soube bem. O avô pegou no copo e antes de beber o vinho disse:
- À saúde do Latagão.
E o rapaz acrescentou:
- E do Bochechas que está a dormir no curral.
O porco, como se ouvisse a conversa, roncou. Os dois riram. Limparam a boca às costas da mão e Lipo disse:
- Posso estar ao teu lado quando for do Bochechas?
- Podes, mas a partir de hoje vais ajudar-me a tratar dele.
Lipo abraçou o avô e voltou para a cama a sentir-se crescido, mais homem que nunca. Afinal era a noite do ritual de passagem. Ia pensar em porcos voadores para tentar sonhar com eles… Adormeceu sorrindo.


Capítulo VII


Alguém abriu a porta do quarto e acendeu uma vela. (Começou a acreditar que, se calhar, ainda não estava a dormir.) Era uma rapariga linda que o olhava nos olhos enquanto se despia. Ela aproximou-se dele calmamente...
Ele sentiu o peso do corpo dela sobre o seu. Deram um abraço apertado e terno. Ele sentiu um calor enorme a invadi-lo...

E depois desse abraço, que durou uma eternidade, percebeu então que adormecia profundamente...

Tão profundamente que quando o dia nasceu não deu por o avô se levantar e sair de casa para tratar dos animais. Como não se apercebeu que o avô, mal saiu de casa, caiu redondo no chão.

A Ti’Rosa ao passar, por ali, deu o alerta. Lipo acordou sobressaltado e quando ia a sair, já atrasado, para ajudar o avô nas tarefas matinais, teve de se afastar da porta para deixar entrar o cortejo dos habitantes da aldeia que transportavam o corpo inanimado do seu avô. Percebeu de imediato o que se passava.

Os aldeões colocaram respeitosamente o corpo na cama. Alguém foi buscar uma bacia de água e uma toalha. Lipo ajudou a despir o avô, pegou na toalha, molhou-a na água e começou a limpar o velho corpo enrugado...
Os aldeões olhavam-no e olhavam-se entre si, sorridentes, virando o corpo ou levantando os membros do Tio Zé para que Lipo se despedisse dele através daquele ritual de limpeza, demorado e silencioso, sublinhado pela intensa troca de olhares...

Terminado o banho, Lipo olhou o grupo e, com um sorriso, foi buscar o vestido de noiva da sua falecida avó e colocou-o sobre o corpo nu do avô, na tentativa de que ele sentisse mais uma vez o peso do corpo da sua companheira.

Um pequenito saiu de repente e voltou a correr com um girassol que colocou sobre o vestido.

Inesperadamente todos começaram a rir e, numa enorme cumplicidade, saíram do quarto deixando os “noivos” à vontade.
Numa azáfama, foram buscar pão, vinho, presunto, azeitonas e, já na cozinha, começaram a comer e a beber numa fraterna partilha...Alguém começou a entoar uma antiga canção:

“Semeei uma semente
no corpo da minha amada,
Fui regando com muito amor,
E quase sem fazer nada,
Nasceu uma linda flor.

Tinha braços e tinha pernas,
Era um novo ser.
Uma menina linda
Que todos viram nascer”

No refrão foram-se juntando mais vozes:

Os homens
“A vida dá muitas voltas,
Como uma estrela no céu,
Semeei uma semente
E tenho um filho meu...”

As mulheres
“Colocaste a semente,
Mas a terra fui eu,
Cresceu em mim,
O filho é meu.”

Homens e mulheres
“Somos pais e somos mães,
É infinito o nosso amor.
Venham filhos ao nosso colo,
Nunca esqueçam este calor.”

As crianças
Nós somos o futuro,
Somos terra e semente.
E quando queremos muito
Nasce um bebé, de repente.”

Repetiram várias vezes...

Ao segundo copo de vinho Lipo lembrou-se das palavras mágicas:
- Lêvide més, tornarim dõs…

Começou a ouvir-se um silvo longínquo que se foi aproximando e transformando no som de um trovão… De repente parou. Uma luz intensa envolveu a casa.

De um pássaro de fogo desceu um anjo que entrou na casa. A luz intensa invadiu a casa e obrigou a que todos fechassem os olhos. Apenas Lipo os manteve abertos.
O anjo beijou a testa de Lipo e pegando Tio Zé nos braços disse, bem alto, para que todos ouvissem:

- Vou levá-lo comigo! Sejam felizes...

E partiu. A luz intensa desapareceu num ápice. Os aldeões ficaram sem conseguir ver nada durante um bocado. Quando olharam a cama vazia começaram a sair. Lipo saiu por último e ficou à porta olhando o céu onde se viam milhares de pontos brilhantes...

Reparou que uma jovem tinha ficado por ali. Ela chegou perto dele e pousando-lhe as mãos nos ombros disse:
- Fico contigo...

Começou a cair uma chuva miúda. Ela disse:

- Sou a Lis…

- Eu sou o Lipo…

E ficaram olhando-se nos olhos como se através do olhar viajassem ao interior um do outro. Como quando nos olhamos ao espelho. A chuva continuava a cair e engrossava.
E eles frente a frente. As mãos dela nos ombros dele. Já ensopados abraçaram-se e sentiram-se elevar no ar como se voassem. A viagem durou uma eternidade. Ou só um instante.

Lipo não percebia ainda. Estava de novo à porta de sua casa mas não via Lis. Da mata surgiu uma velhota com um braçado de pequenos paus:

- Vou acender o lume. Disse a Lipo e gritou. – Venham prá mesa.

De repente um grupo de gaiatos acercou-se cumprimentando-o:

- Olá Ti’ Lipo. Diziam uns. - Olá avô. Diziam outros. E entraram na casa.

Lipo apercebeu-se de que a viagem afinal não durou uma eternidade nem um instante, durou uma vida. Ele estava agora no lugar de seu avô e a velhota que acabara de entrar era Lis…

Lipo sorriu e entrou também na casa. Olhou os gaiatos sentados à mesa e lembrou-se de tudo. O casalinho de olhos claros são os seus netos, Mara e Rafa. Os outros três, dois meninos e uma menina, são filhos de um casal fulminado, por uma raio, há dois anos e que, após a tragédia, ficaram a viver ali em casa.

Enquanto relembrava tudo isto, entraram na casa a sua filha e o companheiro. Os miúdos fizeram uma festa. Lipo recordou outra parte da vida. A sua filha, Rosa, era professora primária e, quando o raio atingiu um casal na aldeia, deixando três filhos órfãos, Rosa decidiu mudar a sua vida. Falou com Lipo para adotar as crianças, abandonar o ensino normal e passar a ensinar em casa. Foi um processo longo de legalização mas Rosa conseguiu o que pretendia. E propôs a Lipo fazer da casa e dos terrenos uma pequena comunidade autónoma num relacionamento aberto com toda a aldeia. Passou a viver com Jorge, antigo colega de universidade e companheiro de ideias, do qual nasceram Mara e Rafa.

Para Lipo, a partir daí, tudo ganhou um novo sentido, ou melhor, tudo reganhou sentido,
Ele e Lis eram amantes há muitos anos, o nascimento da filha consolidou esse amor e o envelhecimento veio com naturalidade. Eram agora elementos de uma experiência única.

Hoje ele tinha combinado levar as crianças à Gruta da Lage, esse lugar em que, com o Tio Zé, tinha descoberto parte da magia da vida, para lhes mostrar que o mar já tinha estado na aldeia.

Os mais novos estavam entusiasmados com o passeio e Lipo estava receoso de poder não corresponder à expetativa. Já há muitos anos que não voltava ao local.

Levavam um pequeno lanche e caminhavam pelo antigo trilho que servia ao pastoreio e dava acesso à gruta. As crianças avançavam em silêncio na peugada de Lipo. Era estranho ver avançar aquele rebanho monte acima.

Ao aproximarem-se do pequeno buraco que dava acesso à gruta um relâmpago rasgou o céu e, passados uns segundos, um trovão ribombou nos ares fazendo tremer todo o grupo. E, acocorados à entrada do buraco, viram o mar aproximar-se novamente da aldeia. Ninguém disse nada, os mais novos olharam Lipo e viram o seu ar fascinado e as lágrimas a correrem-lhe pela face. Aconchegaram-se uns nos outros enquanto assistiam ao espetáculo deslumbrante do mar a galgar o vale e a parar junto ao limite da aldeia.

Lipo tirou, de um pequeno saco que trazia, três conchas, três búzios e três estrelas-do-mar, e começou a contar o que Ti’ Zé lhe tinha contado:

“É difícil imaginar o tempo em que o nosso mundo era só dos animais e nós ainda não existíamos…”





Capítulo VIII

Lipo tirou, de um pequeno saco que trazia, três conchas, três búzios e três estrelas-do-mar, e começou a contar o que Ti’ Zé lhe tinha contado: “É difícil imaginar o tempo em que o nosso mundo era só dos animais e nós ainda não existíamos…”

Assim que Lipo acabou de contar a história desceram de novo para a aldeia. Quando chegaram, despiram-se e mergulharam no mar juntando-se aos outros habitantes. Os mais novos nadavam fascinados.
Era a primeira vez que estavam no mar. Apenas conheciam a pequena lagoa da cascata.
Nunca tinham imaginado tanta água junta e tão salgada.
Estavam tão felizes que cantavam…

De repente pararam. Um navio enorme passava ao largo carregado de gente. As pessoas amontoavam-se no convés. As crianças olhavam espantadas e boquiabertas para o barco. Parecia um pedaço de metal coberto de seres humanos. As crianças viraram-se e interrogaram os adultos com o olhar. Mas os adultos estavam tão incrédulos como eles.

Entretanto o barco seguia o seu rumo. E a massa humana que sobrecarregava o navio parecia apenas um monte de roupa suja atirada para um alguidar. A população que observava isto despida foi buscar a sua roupa e regressou a casa em silêncio.
Já o barco era um ponto longínquo na vastidão do mar. E parecia que cada um dos habitantes da aldeia se sentia um dos viajantes. O silêncio era a viagem.

Nesse instante o sol deu início ao seu mergulho no mar. Os aldeões sorriram e permaneceram sentados até o disco dourado do sol estar, por inteiro, no interior do mar. Levantaram-se e seguiram viagem para casa.

Lipo e os habitantes da sua casa vestiram-se à entrada. Lis sentou-se à mesa com Rosa, Jorge e os pequenos. Foi Lipo quem serviu a sopa nessa noite.
Foi pegando nos pratos um por um e foi servindo diretamente da panela de ferro que estava na lareira de chão. Raras vezes a sopa era servida diretamente da panela. Apenas Lipo conservava essa memória.

Quando vivia com o seu avô, ele fazia sempre assim. E Lipo gostava de recordar esse momento. Depois de servir os outros serviu-se também e sentou-se. Comiam calados, mesmo os mais novos.
O mar e a imagem do navio cargueiro substituíam as palavras. Conforme comiam o calor aumentava. Parecia que o caldo quente fazia aumentar a temperatura da cozinha.
Mas Lipo percebeu o que era…
A panela de ferro estava a ficar em brasa. Já só tinha um resto de sopa e Lipo já deixara preparadas, hortaliça e maçãs para acrescentar o caldo e ferver a lavagem para o porco que este ano se chamava Pavão. Foi Mara quem lhe pôs o nome.
E todos pensavam que era por ter pouco líquido que a panela estava tão quente. Mas Lipo sabia que não era por isso, era porque algo de muito grave se passava.

Acabaram de comer em silêncio. Os mais pequenos foram para a cama. Lis foi com eles.
Rosa e Jorge olharam Lipo e aperceberam-se que estava perturbado. A panela estava ao rubro. Lá fora começou a ouvir-se um murmúrio.
Parecia uma reza. Lipo conhecia de cor as palavras e abriu a porta. Ao sair começou a engrossar o coro que se ouvia ao longe:

- Lêvide més, tornarim dõs…

E foi de novo junto ao mar. Rosa e Jorge seguiram-no. O luar iluminava a praia. Começaram a aperceber-se de que centenas de pessoas estavam de pé entoando estranhas palavras. E que dezenas de cadáveres cobriam parte da areia a seus pés.

Uma mulher lindíssima mas muito velha destacava-se da multidão. Lipo avançou para ela e todos se calaram. Lipo e a mulher conversaram uns instantes mas ninguém percebeu o que diziam. Quando se calaram os mais fortes pegaram nos mortos e Lipo pediu a Jorge que lhes indicasse o caminho para o lago da cascata. Eles foram e quando chegaram ao lago despiram os corpos dos defuntos e lavaram-nos na água doce e límpida deixando que eles flutuassem depois de lavados. Era um estranho ritual funerário.

Entretanto Lipo levou alguns dos homens com ele e foram abrir as sepulturas para os cadáveres no vale junto ao morro da caverna.

A mulher lindíssima ficou sozinha na praia.
Rosa aproximou-se e respeitosamente murmurou:
- Avó!
E abraçou-a emocionada…

Capítulo IX

Lipo tirou, de um pequeno saco que trazia, três conchas, três búzios e três estrelas-do-mar, e começou a contar o que Ti’ Zé lhe tinha contado:

“É difícil imaginar o tempo em que o nosso mundo era só dos animais e nós ainda não existíamos…”

Assim que Lipo acabou de contar a história desceram de novo para a aldeia.
Quando chegaram, despiram-se e mergulharam no mar
juntando-se aos outros habitantes. Os mais novos nadavam fascinados.
Era a primeira vez que estavam no mar.
Apenas conheciam a pequena lagoa da cascata.
Nunca tinham imaginado tanta água junta e tão salgada.
Estavam tão felizes que cantavam…

De repente pararam. Um navio enorme passava ao largo carregado de gente.
As pessoas amontoavam-se no convés.
As crianças olhavam espantadas e boquiabertas para o barco.
Parecia um pedaço de metal coberto de seres humanos.
As crianças viraram-se e interrogaram os adultos com o olhar.
Mas os adultos estavam tão incrédulos como eles.

Entretanto o barco seguia o seu rumo. E a massa humana que sobrecarregava o navio parecia apenas um monte de roupa suja atirada para um alguidar.
A população que observava isto despida
foi buscar a sua roupa e regressou a casa em silêncio.
Já o barco era um ponto longínquo na vastidão do mar.
E parecia que cada um dos habitantes da aldeia se sentia um dos viajantes.
O silêncio era a viagem.

Nesse instante o sol deu início ao seu mergulho no mar.
Os aldeões sorriram e permaneceram sentados até o disco dourado do sol estar,
por inteiro, no interior do mar. Levantaram-se e seguiram viagem para casa.

Lipo e os habitantes da sua casa vestiram-se à entrada.
Lis sentou-se à mesa com Rosa, Jorge e os pequenos.
Foi Lipo quem serviu a sopa nessa noite.
Foi pegando nos pratos um por um e foi servindo diretamente da panela de ferro
que estava na lareira de chão. Raras vezes a sopa era servida diretamente da panela. Apenas Lipo conservava essa memória.

Quando vivia com o seu avô, ele fazia sempre assim.
E Lipo gostava de recordar esse momento.
Depois de servir os outros serviu-se também e sentou-se.
Comiam calados, mesmo os mais novos.
O mar e a imagem do navio cargueiro substituíam as palavras.
Conforme comiam o calor aumentava.
Parecia que o caldo quente fazia aumentar a temperatura da cozinha.
Mas Lipo percebeu o que era…

A panela de ferro estava a ficar em brasa.
Já só tinha um resto de sopa e Lipo já deixara preparadas, hortaliça e maçãs para acrescentar o caldo e ferver a lavagem para o porco que este ano se chamava Pavão. Foi Mara quem lhe pôs o nome.
E todos pensavam que era por ter pouco líquido que a panela estava tão quente.
Mas Lipo sabia que não era por isso, era porque algo de muito grave se passava.

Acabaram de comer em silêncio.
Os mais pequenos foram para a cama. Lis foi com eles.
Rosa e Jorge olharam Lipo e aperceberam-se que estava perturbado.
A panela estava ao rubro. Lá fora começou a ouvir-se um murmúrio.
Parecia uma reza. Lipo conhecia de cor as palavras e abriu a porta.
Ao sair começou a engrossar o coro que se ouvia ao longe:

- Lêvide més, tornarim dõs…

E foi de novo junto ao mar. Rosa e Jorge seguiram-no. O luar iluminava a praia. Começaram a aperceber-se de que
centenas de pessoas estavam de pé entoando estranhas palavras.
E que dezenas de cadáveres cobriam parte da areia a seus pés.

Uma mulher lindíssima mas muito velha destacava-se da multidão.
Lipo avançou para ela e todos se calaram.
Lipo e a mulher conversaram uns instantes mas ninguém percebeu o que diziam. Quando se calaram os mais fortes pegaram nos mortos
e Lipo pediu a Jorge que lhes indicasse o caminho para o lago da cascata.
Eles foram e quando chegaram ao lago despiram os corpos dos defuntos
e lavaram-nos na água doce e límpida
deixando que eles flutuassem depois de lavados.
Era um estranho ritual funerário.

Entretanto Lipo levou alguns dos homens com ele e foram abrir as sepulturas para os cadáveres no vale junto ao morro da caverna.

A mulher lindíssima ficou sozinha na praia.
Rosa aproximou-se e respeitosamente murmurou:

- Avó!

E abraçou-a emocionada…





Capítulo X


Os corpos enlaçados das duas mulheres começaram a rodopiar a tal velocidade que criaram um pequeno tornado que se elevou no ar mas rapidamente se transformou num tufão fazendo elevar as águas do mar como se se tratasse de uma maré cheia violentíssima.

Todos se deitaram no chão cobrindo os mais frágeis…
Lipo começou a imaginar que o tufão ia levar tudo pelos ares e que a aldeia se ia transformar num deserto. E pensava:

- A população vai ter de se adaptar. Alguns de nós vão-se transformar numa comunidade nómada, e os outros vão viver em casas subterrâneas escavadas na rocha. Uns e outros passarão a viver cobertos de panos coloridos. E assim aconteceu.

Lipo e a sua família ficaram na aldeia. Durante um ano construíram uma casa na base do morro em conjunto com mais uma dúzia de famílias. Os que partiram, e que eram habitantes da aldeia, juntaram-se aos migrantes. Mas antes de saírem escavaram no interior da Gruta da Lage vários buracos onde depositaram os corpos dos falecidos no naufrágio.

Passado um tempo criaram um pequeno oásis no sopé do morro da gruta e os dois clãs (os nómadas e os sedentários) encontravam-se para trocar os bens necessários à sua nova existência. E uma vez por ano toda a comunidade celebrava uma cerimónia nova em que Lipo depositava, num pequeno círculo à entrada da gruta, três conchas, três búzios e três estrelas-do-mar e todos entoavam durante toda a noite o cântico antigo:

- Lêvide més, tornarim dõs/ Sem tempéra viteuna/ Alaj bicotar triunari/ Dôs tornarim, més lêvide…

Passaram os anos e tudo se manteve inalterável: o deserto, as pessoas, o oásis, as casas e o cemitério. Mas este ano, no dia da cerimónia, os nómadas não apareceram.
Algo se tinha passado. Lipo e os sedentários não sabiam o que teria acontecido. Aguardaram até à noite e os outros não chegaram. Não valia a pena celebrar sem estarem todos. Recolheram a suas casas, apagaram os lumes e ficaram recolhidos em silêncio sem conseguirem descansar. A meio da noite algo mexia lá fora. Mas ninguém se atrevia a sair com medo daquilo que iria encontrar. Os mais pequenos não conseguiram resistir à curiosidade e, sem que ninguém se apercebesse, saíram de casa e depararam com um objeto estranho, um pequeno robot com câmaras e luzes que apanhava pedras e areia para o interior da barriga. Eles pararam em frente do ser mecânico e aguardaram sem medo. O ser parou também e iluminou-os. Sentiram-se analisados até ao seu interior. Entretanto todos foram saindo das casas e assistiam a este encontro. Mara disse:

- É um extraterrestre, quase de certeza…

Os outros iam responder mas o robot subiu um pouco no ar e disse:

- Lêvide més, tornarim dõs…

Lipo e Lis aproximaram-se e responderam:

- Dôs tornarim, més lêvide…

E todos em coro repetiram a frase:

- Dôs tornarim, més lêvide…

Do céu desceram dezenas de outros seres mecânicos idênticos àquele.
Ninguém sentiu receio ou se questionou sobre as razões da estranha visita.
Numa duna longínqua começaram a surgir os sedentários. A alegria era geral.
O reencontro foi intenso e emotivo.

Quando tudo acalmou o ser mecânico partiu com o seu grupo. Todos ficaram perplexos mas apenas por momentos. Sabiam que tinham de aproveitar o resto da noite para celebrar a nova cerimónia à entrada da gruta.

Mara e Rafa ficaram a olhar fascinados para o céu e pareciam ver, muito ao longe, o planeta de onde tinham vindo os visitantes do espaço.








Capítulo XI


Quando tudo acalmou o ser mecânico partiu com o seu grupo. Todos ficaram perplexos mas apenas por momentos. Sabiam que tinham de aproveitar o resto da noite para celebrar a nova cerimónia à entrada da gruta.

Mara e Rafa ficaram a olhar fascinados para o céu e pareciam ver, muito ao longe, o planeta de onde tinham vindo os visitantes do espaço.

Dirigiram-se todos para a entrada da gruta e Lipo deu início à celebração. Voltavam a estar juntos e isso era motivo de grande alegria. A noite estava fria mas ninguém arredou pé. Mara e Rafa abrigaram-se dentro da gruta.
Ao entrarem viram que o interior da gruta parecia ter luz própria.
A luz vinha dos túmulos escavados na rocha. Aproximaram-se a medo.
Eram os próprios cadáveres dos náufragos migrantes que irradiavam uma luz ténue. Rafa começou a recuar mas Mara segurou-o e sorriu:

- Já viste como é bonito? Os corpos brilham. Cada corpo tem milhões de minúsculas luzinhas como se cada corpo fosse um universo.

Rafa sorriu também e, agora mais calmo, olhou fascinado as dezenas de universos arrumados nas paredes.

Lá fora a cerimónia terminou e Lipo deu por falta dos netos. Disse a Lis que aguardasse ali e pedisse a todos os outros, nómadas e sedentários, que ficassem também e entrou na gruta à procura dos netos. Rafa dizia:

- Temos de perguntar ao avô…

- O que me querem perguntar? – disse Lipo interrompendo-o.

Mara e Rafa abraçaram o avô.

- Porque é que estes corpos defuntos brilham como se fossem galáxias? – Disse Rafa.

- Porque são galáxias e esta gruta é como se fosse um universo. Quando viemos enterrar os migrantes mortos éramos para os sepultar no vale mas como já sabíamos que cada corpo é uma galáxia decidimos colocá-los nas paredes da gruta. Assim podemos assistir a esta maravilhosa visão.

Fez-se silêncio enquanto observavam aquela surpreende imagem. Passado um tempo Lipo tirou mais uma vez as três conchas, os três búzios e as três estrelas-do-mar do saco que trazia sempre à cintura, e colocou-os no centro da gruta. Quase num sussurro disse:

- Lêvide més, tornarim dõs…

Ao que netos responderam ainda mais baixinho:

- Dôs tornarim, més lêvide…

Lipo chegou à porta da gruta e repetiu bem alto para que todos os que aguardavam pudessem ouvir:

- Lêvide més, tornarim dõs…

E todos em coro gritaram:

- Dôs tornarim, més lêvide…

Dentro da gruta as pequenas luzinhas de todos os corpos ganharam uma nova intensidade e Mara e Rafa viram nascer, do meio das três conchas, dos três búzios e das três estrelas-do-mar, um pequeno fio de água que começou a correr para a entrada da gruta. Todos se afastaram para deixar passar o líquido há tanto desaparecido e viram-no engrossar abrindo um largo caminho que alargava cada vez mais e, junto da aldeia, voltou a encher o local da antiga lagoa. E sem nunca parar continuou, num longo caminho, até ao longínquo mar que já tinha estado junto da aldeia.

Mara e Rafa saíram da gruta e juntaram as suas vozes ao coro imenso que toda a comunidade entoava cantando alegremente com os pés mergulhados na água fresca que jorrava da gruta, agora nascente de um grosso caudal que saia do buraco da entrada iluminado por uma enorme quantidade de pequenas luzes que pareciam pirilampos rodopiando no interior do líquido.

De repente todos se jogaram para o rio e se deixaram viajar até à lagoa. Uns, flutuando como pequenos barcos que lembravam aquele que o Ti’Zé esculpia de um pedaço de corcódoa e que punha a navegar nos regos abertos para a rega. Outros, mais afoitos, pois sabiam que era possível voar por dentro do líquido, mergulhavam e deixavam-se ir, voando, junto das pequenas luzinhas.

Quando desaguaram na lagoa deixaram-se ficar a flutuar e adormeceram olhando deslumbrados o céu estrelado como nunca tinham visto, como se o vissem pela primeira vez.. E tiveram um sonho coletivo…