Filipa Jesus

18 de 09 de 2021, 08:30

Fotorreportagem

Os ares do Grande Sanatório do Caramulo pelos olhos de quem lá trabalhou

Cem anos depois, o Grande Sanatório do Caramulo ainda nos conta memórias de quem por lá passou. Em tempos, chegou a ter 2.500 tuberculosos. Hoje, ampara placas a anunciar uma futura demolição

Visita ao Sanatório com o Senhor Fernando

Fotógrafo: Igor Ferreira

“Isto aqui era o escritório, eu trabalhei ali naquele canto”, disse Fernando Ferreira da Silva, ao debruçar-se nas grades enferrujadas de uma das janelas. Acompanhámos-lhe os movimentos e absorvemos cada detalhe daquele espaço. Uma sala acanhada, talvez pelo vazio ou pelo silêncio que se faz sentir, onde trabalhavam pelo menos cinco pessoas. “Ainda tem ali o cofre, não tem lá nada que eu já lá fui”, continuou, ao ritmo de leves gargalhadas. A vida que antes ali se viveu parecia estar a ser contada pelas palavras de Fernando. Palavras essas que seguiam o seu próprio caminho para nos mostrar o “antigamente”. Aquela imagem de um Grande Sanatório abandonado e vazio desvaneceu. Revelou-se uma outra: à direita "uma farmácia, era a farmácia do Grande Sanatório que pertencia à Sociedade do Caramulo” e à esquerda "uma barbearia e uma papelaria com novidades. Era um movimento constante".

Estávamos a 800 metros de altitude, em pleno Caramulo, no concelho de Tondela. Uma pequena vila que, pelas contas de Fernando, chegou a ter mais de 20 sanatórios “porque havia casas particulares que recebiam doentes com a assistência do corpo clínico”. Em tempos, eram 2.500 os tuberculosos que respiravam os ares da serra. A história já se sabe: o primeiro sanatório abriu portas em 1922, após o médico Jerónimo de Lacerda ter criado a sociedade que iria dar início à maior estância sanatorial de Portugal e da Península Ibérica. Seguiu-se a abertura das restantes pensões e casas de saúde. Na época, dizia-se que os ares do Caramulo faziam "milagres" na cura da tuberculose.

Fernando Ferreira da Silva tem hoje 88 anos. Na altura, “tinha 20 e poucos” e trabalhou como escriturário entre 1956 e 1958. Naquela sala do rés-do-chão, chegava tudo o que era documentação dos utentes, papeis de salários, dinheiros e papelada referente à Sociedade do Caramulo. “Os doentes vinham, eram recebidos aqui e eram distribuídos pelos sanatórios pelas vagas que havia. O dinheiro também vinha sempre para aqui e depois era distribuído por nós, mediante as diárias que cada sanatório tinha de doentes”, explicou, enquanto se recostava à porta da entrada, hoje, selada por um cadeado.

E a conversa seguiu até à razão de tanta gente ter passado pelo Caramulo: tuberculose. É quase sinónimo de tratamentos dolorosos e rotinas hospitalares restritas. “Apesar de ser uma doença quase fatal, tinha muitos estádios. Ou vinham muito doentes com pouca mobilidade, mas no início ou até no meio tinham muita mobilidade. Eles [utentes] saiam todos os dias se os deixassem, andavam sempre cá fora a ponto da Estância Sanatorial do Caramulo ter cinco ou seis fiscais que tomavam conta”, contou.

A rotina era simples: das 10h00 às 12h00 era a “hora de cura” e voltava a repetir-se depois de almoço, das 14h00 às 16h00. A partir daí, as restrições eram levantadas e os utentes eram autorizados a circular até às 18h00. “A cura que eles mais exigiam deles era das 14h00 às 16h00. Era silêncio… completamente”, suspirou.

Eram deitados em macas de ferro alinhadas ao milímetro, aconchegados por cobertores axadrezados já rafados pelo uso, com vista privilegiada para o Caramulo. Ao fundo da galeria, apenas um ecrã para projeção de filmes. Há lugares de silêncio e de espera e este era um deles. Um silêncio profundo que certamente nos faria refletir. “Todos os sanatórios que foram feitos para isto, todos têm essas varandas. As varandas tinham cadeiras de cura, que era de ferro, onde às 14h00 às 16h00 deitavam-se. Nem no quarto podiam ficar a não ser que estivessem acamados. Tinham uma certa exigência nisso”, assinalou. Apesar do levantamento das regras, “eram proibidos de passar dos limites que é um leão que está ali em baixo e outro que está lá em cima. Pelo regulamento interno da estância, não podiam passar daí, mas eles iam até Viseu, fugiam”, lançou, entre sorrisos.

No início, a ciência era pouca e “grande cura inicial era comer” e “eu sei que uma vez, até foi comentado na altura que um utente que estava aqui no Grande Sanatório comeu 14 bifes panados ao almoço”, brincou. Tempos depois, “fazia-se cá muito uma operação que tiravam as costelas, no início era do que eles se socorriam. Chamava-se a isso corte de costelas. Primeiro tiravam o que tinham a tirar, depois a ciência evoluiu e eles começavam a tirar partes. Já foi mais adiantando, vinha aí um médico francês fazer as operações e depois morreu numa viagem para cá”, acrescentou.

Seguiu-se a chamada ‘tentativa e erro’ quando os médicos do Caramulo começaram também a fazer as cirurgias, “mas morriam todos, demoravam tempo demais”, lamentou. Havia também a cura natural. O tuberculoso ficava na estãncia por três ou quatro anos e saí curado. “Normalmente, curavam. Era à base de comer, descansar e os ares”, confirmou, enquanto percorríamos o terreno que contorna o edifício.

E, entretanto, chegámos ao cinema do sanatório. Na época, “isto era muito bonito, tinha uma escadaria“ e era uma rua bem movimentada” até porque “a gente via aqui filmes antes de eles passarem no Porto ou em Coimbra, por exemplo. Todos os bons filmes passavam aqui e era aberto ao público em geral, não era só para só para o sanatório”, revelou, sem esquecer que o primeiro filme que ali viu foi o Fantasma da Ópera.

E o preço dos bilhetes? “Eram 25 tostões a geral, a seguir tinham três filas de cadeiras que era a superior que era 13 escudos e depois a plateia eram 5 escudos. A gente ia sempre lá para baixo”, disse, entre leves gargalhadas. E aquelas escadas de mármore levam-nos o olhar até à sala de jogos e “à direita era uma sala de estar muito bonita”, que Fernando chegou a fotografar, no seu tempo de fotógrafo.

Foram três anos a trabalhar pelos ares do Caramulo. Em 1958, “saí porque desobedeci a uma ordem, mas era uma ordem que imaginava que não tinha o dever de a fazer e ainda hoje imagino”. Tratava-se de uma ida a um comício do Américo Tomás, no Porto. “Não fui, mas o meu pai foi no meu lugar e o autocarro foi apedrejado na ponte D. Luís I”, adiantou, com o olhar a sorrir-nos.

A partir daí, foi-lhe proposto ir para uma nova sociedade, num armazém de mercearia que havia para abastecer todos os sanatórios. “Quando me apresentaram um contrato de trabalho que eu iria ganhar 800… Percebi logo. Vim-me embora, se eu estava com um salário muito mais elevado e se depois me baixaram”. O destino seguinte foi o Porto e depois o Brasil. “Ganha-se muito numa altura assim, indo de um regime daqui para lá [Brasil] . Aquilo era aberto, um indivíduo fica extasiado e quem quiser aprende-se muito”, disse.

A demolição do Grande Sanatório está anunciada. Perguntámos-lhe o que as pessoas pensam: “é um descrédito total, só quando se vir”, rematou.