Autor

David Duarte

14 de 01 de 2022, 16:27

Colunistas

Fragmentos de um Diário - 16 Outubro 1980

Preciso refletir com calma, devagar. Procurar a espontaneidade é um dos objetivos. Contra senso? Não

Que escrever? Em vão tento evitar a apatia pela escrita. Desistir da poesia? Mas como, se vivo em função dela? Que se passa? Não sei, um sentimento de vazio apodera-se de mim quando me sento com a intenção de escrever. Talvez tudo se prenda com o que se pode designar por problemática existencial. A minha. Sim, porque não é impunemente que nos entregamos à literatura fechando portas à vida que fermenta nas ruas. Isso aconteceu-me e já não me satisfaz. Quero descer as escadas, pisar a estrada, mergulhar forte na movimentação material da vida. Mas não encontro a chave. Durante todo este tempo construí um conjunto de hábitos, embrulhei-me de tal modo numa engrenagem que o resultado foi fechar-me em demasia no casulo, complicar-me. E eis-me aos vinte e três anos, «orgulhosamente só», de mãos demasiado limpas, ingénuo, desiludido, sem saber como vestir o fato-macaco e partir. Mas, afinal, não estarei já à partida a complicar tudo? Como imagino eu que seja essa vida? Não estarei mais uma vez a ser vítima da imaginação literária?
        Preciso refletir com calma, devagar. Procurar a espontaneidade é um dos objetivos. Contra senso? Não. Há seres naturalmente espontâneos, outros devem forjar a capacidade de o serem. O meu desígnio é esse.
        Talvez me facilitasse a tarefa elaborar um programa mínimo de ação. Não para fixar rigidamente uma conduta. Mas impõe-se que pese, medite e decida que tipo de relação pretendo ter com os meus amigos e conhecidos. Para evitar equívocos, desentendimentos, zangas. Mas acho-me dividido. Por um lado, penso que o que deve pautar a amizade é a sinceridade, a confiança, a cumplicidade. Mas a realidade ensina-me que isso com frequência só provoca choques, conflitos. Assim, uma cláusula do tal programa recomendaria da minha parte uma atitude mais inteligente, mais realista no sentido de não exigir ou esperar tanto dos amigos.
Transporto a desilusão às costas. Em quase todos os aspetos, o quotidiano só me oferece motivos de descrença. Acontecem coisas, vivências. É verdade. Mas é tudo muito ligeiro, ou irritante, ou sem significado. O meu desejo prende-se a um imperativo metafísico. Mas acho que exijo o impossível. O problema é que sem essa exigência de algo mais perfeito, mais ontológico, não sei viver. Desespero. Não me contento em passar uma tarde a beber umas cervejas e a comer tremoços, enquanto se trocam umas piadas. Desespero. E sou assim desde adolescente, sempre insatisfeito.
Vivo em constante nostalgia. Mas a esperança ainda não a perdi.