Autor

David Duarte

10 de 02 de 2024, 09:52

Colunistas

Fragmentos de um Diário - 30 Novembro de 1985

Não há uma ideia para o país, um projeto para a nação, tudo apodrece na luta de interesses. O povo perdeu-se das suas raízes, e navega alienado e furioso

  Tenho andado a ler sobre política. Livros com uma abordagem de direita. Durante muito tempo achei que a verdade se aproximava da esquerda. O capitalismo seria a fonte do mal e o socialismo a solução. Mas o ponto de partida da direita, que é uma visão antropológica pessimista, é muito pertinente. Sempre partilhara da ideia da bondade humana de Rousseau. Mas uma leitura menos distraída da história permite-nos perceber que a brutidade e maldade humanas marcaram muito mais essa paisagem milenar. E que só quando as instituições foram fortes, quer nos valores quer na ação, souberam conduzir de modo positivo as pessoas. Em contrapartida, crer na bondade natural conduz a instituições mais fracas, mais permissivas, rapidamente desrespeitadas.
Por isso achar que o exercício firme de uma autoridade legítima é antidemocrático não tem fundamento. O reconhecimento dos direitos das minorias não pode ruir a legitimidade das maiorias democráticas.
Não há uma ideia para o país, um projeto para a nação, tudo apodrece na luta de interesses. O povo perdeu-se das suas raízes, e navega alienado e furioso por entre programas imbecis de televisão e centros comerciais.
     Vou escrever uma blasfémia: há algo comum entre Salazar e Miguel Torga: ambos representam um conceito de portugalidade que está prestes a desaparecer. Sei que muito os separa, mas há algo neles que me atrai, um Portugal antigo, rural, firme, bravo, vertical. Hoje resta-nos um país desfigurado, suburbano, sem cultura e sem identidade. Um povo massificado, sem música, sem gosto. Talvez exagere. Mas por quanto tempo mais vai este povo resistir ao ataque massivo desta televisão, deste futebol, desta política?

1 de Dezembro de 1985

        Manhã luminosa. Escuto um disco antológico de Elisabeth Schwarzkopf. Fumo um cigarro e penso na vida. Na excessiva vulgaridade do quotidiano. E na escassez de momentos de glória. Estes, quando os há, reportam-se sobretudo a vivências estéticas e, às vezes, familiares. De qualquer modo, ultimamente, sinto-me mais próximo da música dita clássica. Suponho que esgotei as reservas de gosto pelo rock. Sobretudo perdi a paciência para o mundo de valores e atitudes do rock; se há dez anos, alguns comportamentos ainda se poderiam confundir com irreverência, agora parecem ridículos.