Carlos Eduardo

09 de 03 de 2024, 14:00

Diário

''Gosto de falar de Aristides como um herói da consciência''

É voluntária e membro da Sousa Mendes Foundation. A instituição luta há anos por manter vivo o legado, a obra e a mensagem do antigo cônsul que salvou milhares de vidas. Mariana Abrantes assume já ter-se emocionado com o testemunho das pessoas que tiveram familiares salvos da morte às mãos de Hitler. Defende um trabalho junto dos mais novos para divulgar os valores de Aristides e é da opinião de que é preciso parar para pensar. Em julho deste ano vai nascer o Museu Aristides de Sousa Mendes. O objetivo é nunca deixar de lembrar que há sempre alguém que resiste, há sempre alguém que diz não

mariana abrantes sousa mendes foundation

Fotógrafo: Jornal do Centro

Em tempos desafiantes, de atropelos e de questões ligadas à democracia, é ao exemplo de Aristides que nos devemos agarrar?
Absolutamente. Temos sempres muitos desafios e nem sempre reconhecemos os dilemas. O grande feito de Aristides é que não foi indiferente. Não passou adiante, não virou as costas, nem decidiu sobre o joelho. Pressentiu que estava perante um enorme dilema, perante milhares de pessoas aflitas e desesperadas. Ponderou e escolheu o lado certo.

Quando tomou conhecimento da vida e obra de Aristides o que a marcou mais?
Eu soube dele porque um dos nomes do filho mais novo de Aristides é Abranches, eu sou Abrantes. Perguntei aos meus irmãos mais velhos sobre um senhor que tinha salvado muita gente. E eles disseram que o conheciam e que eu também. Falaram-me do palacete. A carrinha do colégio onde estudei passava lá duas vezes por dia. Nunca nos anos 60 ninguém falou nisto. Vim a conhecer a família desse filho na Califórnia. Toda a gente se pergunta o que o levou a fazer aquilo. Aristides não optou pela desobediência, mas sim por algo mais importante: a sua consciência. Gosto de falar de Aristides como um herói da consciência. Alguém que decidiu parar, escutar a consciência e teve a coragem de decidir e seguir o que a consciência lhe ditava. Apesar de saber que corria grandes riscos.

Tem medo do futuro?
Sim, porque acho que a maior parte das pessoas não para para ponderar. A grande lição [de Aristides] é essa. Parar e perceber quando não devemos funcionar em automático. A segunda grande lição é que as coisas não são preto e branco. E há riscos. O que distingue um herói dos meros mortais é a ponderação e assumir riscos. Não sei se a maior parte de nós está pronto para agir assim. É sempre mais fácil avançar.

As novas gerações parecem estar a extremar-se politicamente. A escola pública está a falhar? Nós, enquanto sociedade, estamos a falhar?
A educação dos mais novos é primordial. Acho que há uma idade na formação da personalidade e do caráter, que as pessoas adquirem a sua própria bússola, digamos. Na catequese, em Beijós, recordo-me de ouvir falar da consciência. Fiquei muito curiosa quando me disseram que [a consciência] não se via. Eu não sei se é um tema muito fácil de ensinar: a capacidade que precisamos de ter de ponderar e procurar a nossa própria orientação interna.

O facto de terem nascido em liberdade e em democracia pode dar aos jovens a ideia de que está tudo garantido?
Sim. Eu sou do tempo em que tinha medo de abordar um polícia. Os mais novos já nasceram sem esse medo e sem outros. E também são muito protegidos. E passam muito tempo ligados à internet o que não os leva a pensar e a desafiar-se. Mais do que os educa, entretém-nos. Um dos grandes desafios de quem se interessa por Direitos Humanos é procurar formas de pôr os jovens e os adultos a pensar.

Nestes anos, desde que está na Sousa Mendes Foundation, já deve ter lido e ouvido testemunhos arrepiantes. Quer partilhar algum?
Numa sessão online foi contada a história de uma família de 12 pessoas da Antuérpia. Fugiram a pé da Bélgica. Encontraram um agricultor que tinha uma camioneta de caixa aberta, viajaram com ele e compraram-lhe a camioneta. A bisavó da senhora que partilhou a história estava cansada de fugir. Ela e uma filha decidiram ficar. As pessoas que continuaram a fugir, chegaram a Bordéus onde conseguiram um visto de Aristides. Foram para os Estados Unidos e têm família lá. A bisavó foi apanhada em França e morreu em Auschwitz. A tia morreu noutro campo, em França. Tenho conhecido muitos familiares de pessoas que receberam vistos e quase todos eles perderam alguém na família. Veja-se aquela família… A bisavó não quer ir. Vamos? Deixamo-la? Conheço outra história de uma família que esteve quase a voltar para trás, mas um dos netos, que sabia alemão, tinha lido o Mein Kampf [livro de Hitler] e tinha levado muito a sério as coisas agressivas, os planos incríveis e horríveis… E esse neto convenceu a família de que tinham de sair de França. E felizmente chegaram a Bordéus, receberam vistos e salvaram-se. Este era o dilema dos refugiados. Podemos ter a certeza de que quando vemos um grupo de refugiados, há ali muito sofrimento de terem deixado irmãos, filhos, a mãe, o pai, para trás. Ninguém escolhe ser refugiado. (pausa). Os refugiados são empurrados para a fuga e só saem quando são muito perseguidos no seu país de origem.

Ouvidos e recolhidos estes testemunhos, como é que eles são convertidos em ação, em palavra?
Uma parte da ação que temos vindo a fazer é a divulgação. Recuperar a história de Sousa Mendes e desapagar o que Salazar quis apagar, é muito importante. Nós precisamos de heróis e de perceber que estamos em liberdade porque alguém esteve disponível para correr riscos e sofrer por isso. E depois, falamos com as pessoas sobre isto. Para que entendam o que é sair do país, ser um estranho, não saber falar a língua, não ter onde dormir… É preciso termos empatia para com quem chega até nós. Todas as semanas temos um novo recorde de refugiados. É difícil saber o que podemos fazer. Algumas pessoas tentam trabalhar com eles. Nós podemos ajudá-los. Nem que seja só ensinar-lhes o Português. Mas também apoiar financeiramente algumas instituições que estão a ajudá-los. Ou politicamente, apoiando políticas inclusivas, em que tratamos os outros como gostaríamos de ser tratados.

Como é que assistiu, por exemplo, à manifestação da extrema-direita em Lisboa?
No espectro político, a parte difícil está no centro. É sempre muito mais fácil discutir com argumentos extremados. É sempre mais fácil extremar e usar as coisas que correm mal para agravar o extremismo, do que tentar perceber e resolver. Há políticos que são filhos de emigrantes e são contra os imigrantes. As pessoas nem têm consciência do absurdo que é. Qual é a família portuguesa que não tem primos ou tios lá fora? Como é que queremos que sejam tratados na Suíça ou na Inglaterra? Não faz sentido tratarmos mal as pessoas que precisam de vir para Portugal. São pessoas que estão extremamente fragilizadas, a fugir e a deixar tudo para trás.

2024 fica marcado pelos 50 anos do 25 de Abril e pela abertura do Museu Aristides Sousa Mendes. Que contributo deu a Sousa Mendes Foundation para esta obra que nasce em julho?
Passam também 70 anos desde a morte de Aristides. E o Museu abre a 19 de julho, dia de aniversário dele. Isto é um sonho. A história de Aristides é muito grande. Envolve muita coisa. Os valores, a coragem, o movimento de pessoas, a história mundial e de Portugal. E tudo isso precisa de ter um sítio onde é enquadrado e apresentado às pessoas para que possam sentir o que se estava a passar naquele período. A Sousa Mendes Foundation foi criada em 2010 logo com a missão de ajudar a fundar um Museu Sousa Mendes. Temos estado a trabalhar desde então. Primeiro a contactar as famílias. Muitas delas tinham esquecido toda a história. As famílias que fugiram e se sentiram a salvo, algumas delas pegaram nos documentos da fuga e esconderam-nos. Puseram uma pedra em cima. E nem sequer falaram aos filhos. Um dos trabalhos que temos feito é identificar milhares de pessoas. Um senhor que esteve cá no verão passado soube aos 75 anos que o pai era judeu e que tinha sido salvo por Sousa Mendes. Os refugiados que passam pelo trauma da fuga, mesmo quando percebem que tiveram o milagre de se terem encontrado com Aristides, não querem reviver isso. Temos trazido as terceiras gerações dos salvos por Aristides a Portugal. Fazemos uma viagem desde Bordéus, passa por Vilar Formoso, Cabanas de Viriato e Lisboa. Há pessoas que passam o tempo todo a chorar. É muito emocionante. O impacto de descobrirem porque é que o pai nunca falava disto, descobrir uma irmã que faleceu na fuga… Uma das senhoras escreveu um livro a falar disto. A mãe quando ela tinha 40 anos disse-lhe que tinha os olhos da irmã. E ela perguntou “qual irmã?”. E a mãe respondeu que teve uma filha que nasceu ainda na Europa.

Aristides era um homem de família, que nunca pensou ter este destino nas mãos. Como é que ele termina a vida?
É algo muito importante e espero que essa parte esteja no museu. Depois da azáfama de conceder vistos, a notícia chegou a Lisboa e Salazar chamou-o a Lisboa e moveu-lhe um processo disciplinar. Salazar nomeia uma comissão para dar o parecer. Nesse parecer, a comissão disse que Aristides desobedeceu, mas que se entendia porque se tratava de uma situação extraordinária e que tentou ajudar toda a gente, não tendo feito por mal. Salazar ignorou isso e agravou a pena. Foi dispensado do serviço, foi colocado na reserva e foi obrigado a sair do corpo diplomático. E ficou impedido de trabalhar como advogado. Recolheu a Cabanas de Viriato, à Casa do Passal e foi caindo na miséria. Há um documento em que ele e a segunda mulher vendem o acervo da casa, a mobília, para pagar ao merceeiro. Sofreu imenso. Chegou a escrever uma defesa e muitos dos valores que escreveu veio a refletir-se, anos mais tarde, na Declaração Universal de Direitos Humanos. E ficou apagado. Eu morava ali ao lado e nunca soube de quem era aquele palacete. As pessoas tinham medo de falar de Sousa Mendes.