Está nas bocas do mundo seja pela produção de vinho, seja pelas diversas quintas de luxo situadas numa paisagem de encostas de vinha que saltam à vista dos turistas. A região eleita este ano como a cidade Europeia do Vinho, conhecida como a Região Demarcada do Douro, a mais antiga do mundo, está na moda e não prescinde do prestígio internacional. O turismo, fator de dinamismo no território, tem dado a conhecer um recanto de Portugal que parece escondido e esquecido. E, se há uma face que reluz e convida os turistas a vir e a ficar, para os que cá habitam e continuam a abandonar o interior do Douro, a face é obscura.
Prova disso é a existência da associação Bagos D’Ouro. Em pé há mais de dez anos, tem vindo a trabalhar com a ambição de fazer renascer a educação no Douro, onde a taxa de analfabetismo ao longo dos anos conhece-se como sendo das mais elevadas no país. Com um propósito claro como as águas do rio que serpenteiam uma região que se diz de ouro, tem achatado as desigualdades socioeconómicas das famílias durienses apoiando-as a nível escolar e familiar, por forma a inverter o ciclo de pobreza e exclusão social. A evidência de que o contexto socioeconómico da região do Douro continua a ser alarmante são os sintomas de crescimento e durabilidade desta associação, que se mantém firme no seu apoio a lutar por uma inclusão social digna para estas pessoas. O número de concelhos que abrange aumentou, fazendo parte Alijó, Armamar, Mesão Frio, Murça, Sabrosa, São João da Pesqueira e Tabuaço.
A transformar a vida das crianças e jovens no Douro
“Antes, dizia que só queria estudar até ao décimo segundo ano e que depois ia trabalhar para o campo, mas agora até já pensa em tirar algo relacionado com gestão”, confessa Lurdes Caseiro, mãe do estudante Gustavo. Ao contrário da maioria dos jovens que são sinalizados pelas entidades responsáveis e que, posteriormente, são contactados pela instituição, Lurdes foi aconselhada por uma psicóloga do Município a contactar a IPSS. Nessa altura Lurdes estava desempregada, o que pesou em muito a decisão de optar por se inscrever na associação e tentar a sua sorte. “Não sabia nada sobre a associação e decidi vir falar com a técnica, porque o Gustavo tinha boas notas e sempre seriam umas ajudas”, refere a mãe do estudante. O filho Gustavo tem treze anos e integra a associação há cinco anos, porém só no último ano letivo de 2022/2023 é que começou a sentir mudanças na forma como organiza o estudo, mas também na forma como encara a escola. Com o tempo, o jovem diz ter-se munido de uma maior capacidade para se exprimir com os outros e, essencialmente, viu o seu rendimento escolar melhorar. No entanto, antes desta mudança de comportamento, Gustavo revelava “não ter hábitos de estudo” e “distraía-se com facilidade durante as aulas”. Em casa, ouvia o sermão constante da mãe: se, por um lado, era avisado relativamente às datas em que tinha as avaliações pressionando-o para estudar, por outro, era alertado para se dedicar aos trabalhos de casa dos quais se esquecia.
O percurso vale a pena pela sua trajetória e para Lurdes ver a evolução do filho é “de uma tremenda felicidade.” A reviravolta é tal que, hoje, Gustavo mostra-se um aluno responsável, com um comportamento e motivação mudados. “Agora até já gosto de estudar e custa cada vez menos”. Aluno de sessentas, viu as notas progredirem para os setentas e oitentas, o que em muito o satisfaz ao confessá-lo. Agora, já não é relembrado das suas tarefas e passou a estar mais concentrado. Ademais, antecipa-se a estudar para os testes das diversas disciplinas e faz apontamentos com maior rigor, de maneira a não esquecer a matéria lecionada. Ainda assim, realça que “nada disto seria possível, sem o contributo das duas explicadoras.”
Nádia Ferreira, gerontóloga de profissão, tem 24 anos e é uma das responsáveis pela mudança positiva de Gustavo. Voluntária na associação há pouco mais de um ano, tem notado a evolução do pequeno baguito. Foi através do programa “Enreda-te Digital” – um programa que visava prestar apoio escolar a alunos do 1º e 2º ciclos, em contexto pandémico – que Nádia achou que “fazia todo o sentido colaborar.” Dependendo do seio familiar com que o trabalho seja realizado é fundamental que a família se envolva e esteja tão disponível a ser ajudada quanto o aluno. Semanalmente, Nádia presta apoio domiciliário na casa de Gustavo. Nas suas palavras, “o Gustavo tem um núcleo familiar muito coeso e que rema todo na mesma direção”, o que facilita o nível de aprendizagem, uma vez que a comunicação entre todos é aberta e próxima. À semelhança de Lurdes, Nádia tem notado a evolução do estudante. “O que é facto, é que se tem notado uma evolução significativa no seu percurso escolar. Todas as qualidades que ele tem revelado, principalmente ao longo deste último ano, já as tinha, só não estavam trabalhadas da melhor forma.”
A Associação vai para além de fornecer o material escolar que muitas famílias não conseguem adquirir, ou têm dificuldades em comprar aos filhos. Por um lado, fornece as ferramentas necessárias para fomentar a organização do estudo e a gestão do tempo, por outro acompanha as crianças e jovens a nível psicológico. O sucesso, esse, é obtido em grande parte devido ao envolvimento e comprometimento dado pelos alunos através de um trabalho individualizado graças aos métodos criados pela associação. Elogiado por todos os que dela fazem parte e visto como um paradigma a seguir, o esforço de Gustavo é recompensado com prémios de mérito oferecidos pela Bagos D’Ouro num evento que reúne os alunos e celebra os seus resultados escolares no final de cada ano letivo. O impacto da Bagos D’Ouro tem reduzido o abandono escolar na região, aumentando as expectativas das crianças, rentabilizando a aprovação escolar e Nádia pode confirmá-lo. “São muitas crianças e jovens acompanhados, que têm acesso a muitas oportunidades que é provável que fossem de mais difícil acesso devido às condições socioeconómicas tipicamente vividas no Douro.”
De acordo com os dados a que tivemos acesso no concelho de São João da Pesqueira, a generalidade dos alunos nos diferentes ciclos atingiu as metas e transitaram de ano com elevadas taxas de transição e conclusão (no ano letivo de 2021/22, do 1º ao 3º ciclo a taxa rondou os 100%, já o secundário andou pelos 90%). Relativamente à taxa de desistência os números diminuíram ao longo dos anos, com exceção do ano letivo anterior, onde os números parecem evidenciar consequências imediatas da pandemia COVID-19 (no secundário, por exemplo, a taxa foi de 13,8% sendo superior aos 9,7% do ano letivo anterior).
13 anos a lutar contra a face que continua obscura
Amadeu Castro, de 52 anos, é pároco na vila pesqueirense e é o atual Vice-Presidente da associação Bagos D’Ouro. Natural de Gosende, Castro Daire, trabalha no concelho pesqueirense há 26 anos. Envolvido em diversas atividades de solidariedade no território, conhece de uma ponta à outra a região. Em conversa confessa que, de início, não acreditou que a proposta de Luísa Amorim, atual Presidente, fosse para levar avante, embora reconhecesse nela a sua importância. “Todos sabemos que a região do Douro é uma das regiões mais pobres da Europa e a Luísa [Amorim] lançou-me o desafio porque pensámos – e pensamos – que há a necessidade de fazermos algo pelas crianças que, no fundo, nascem num mundo igual para todos, mas igualmente desigual.”
O concelho de São João da Pesqueira, distrito de Viseu, situado na sub-região do Douro, é um dos treze concelhos que fazem parte da região Demarcada do Alto Douro Vinhateiro. Os baixos níveis de rendimento das famílias sentem-se numa região onde o principal setor é a agricultura. De acordo com os dados recolhidos da Bagos D’Ouro, 97% das famílias que são ajudadas vivem com um salário mensal de referência igual ou inferior a 443€ por mês, o que equivale ao 1º e 2º Escalões do Abono de Família. Para Amadeu, não existe propriamente uma tipologia daquilo que são as famílias ligadas à instituição além da “necessidade como base”. Ainda assim, a Bagos reconhece que parte das famílias ajudadas são monoparentais com práticas parentais desajustadas e com problemas relacionados com algumas substâncias, como é o caso do álcool.
De acordo com os últimos dados do Instituto Nacional de Estatística (INE), o ganho médio mensal diminui à medida que se estreita a unidade territorial. O país apresenta um valor de 1289,5€, um valor que se denota mais baixo se observamos a região do Douro – com um valor de 1031,52€. Nos municípios a que a Bagos D’Ouro abrange, identificamos valores como:
Alijó: 987,07€;
Armamar: 970,92€;
Mesão Frio: 982,66€;
Murça: 961,41€;
Sabrosa: 1037,62€;
São João da Pesqueira: 1015,81€;
Tabuaço: 1023;68€.
Fonte: INE
A desertificação continua a ser um dos grandes desafios no interior do Douro, com a escassez de mão de obra a preocupar uma região que vive essencialmente da agricultura. São João da Pesqueira é um exemplo paradigmático dessa realidade e, atualmente, vivem 6775 pessoas no concelho. De acordo com os Censos de 2021, o setor primário obteve um decréscimo de mão de obra, já que nesse ano o número era de 1045 pessoas e em 2011 de 1164 pessoas.
O processo de sinalização destas pessoas é complexo e alberga o apoio em rede, uma vez que é nessa cooperação com os parceiros sociais que são identificadas as necessidades das crianças. “Os parceiros são essenciais na sinalização, porque depois somos nós que fazemos essa avaliação”, informa Amadeu Castro. As escolas, as autarquias, as Comissões de Proteção de Crianças, as IPSS, os Gabinetes de Inserção Social, são alguns dos exemplos dos parceiros a que a Bagos tem acesso para que nada falhe nesse processo.
Segundo o Relatório e Contas de 2022, a associação conta com diversos tipos de donativos podendo, assim, atrair maior investimento social bem como multiplicar o impacto que tem na vida destas pessoas. Desta forma, consegue planear um alargamento sustentado da atividade a outros concelhos da região. No que toca a números, a Bagos D’Ouro apresenta 44 parceiros corporate e produtores (importantes no seu contributo para a manutenção e sustentabilidade da associação); 82 parceiros pro bono (essenciais no funcionamento da atividade de terreno e apoio à estrutura); e 35 empresas Amigas Bagos D’Ouro (que acompanham de perto o percurso pessoal e escolar destas crianças, permitindo o compromisso de ajuda a longo prazo).
E se o Douro é diverso nas suas castas, estas famílias com necessidades financeiras são as mesmas independentemente do concelho de que estejamos a falar. “Quando o nosso foco é a educação, a realidade da Pesqueira é igual à de Alijó e de Mesão Frio.” Para o pároco de São João da Pesqueira, estas são crianças com “um potencial enorme”, mas que “o mundo não lhes deu as condições para que possam seguir em frente.” Como tal, o objetivo do seu trabalho passa por olhar para as suas dificuldades “e tentar abrir-lhes portas e janelas que, muitas das vezes, a vida trancou-lhes”, confessa Amadeu. “São famílias vulneráveis, com problemas de pobreza, de inserção social, e nós queremos apenas dar-lhes as mesmas oportunidades e a mesma igualdade e direitos”.
Na visão de Amadeu o foco é a educação, sendo ela potencializadora de transformar as vidas destas crianças. A aposta no ensino contribuirá, nas suas palavras, para uma melhor qualidade de vida da população. Apesar de tudo, os esforços da associação têm tido impacto nos números animadores que se veem agora registados com uma descida da percentagem de analfabetismo. A região do Douro, em 2011, viu a sua taxa de analfabetismo nos 8,64% e, em 2021, superou a média nacional com uma taxa de 5,39%. Quem o garante é o Instituto Nacional de Estatística (INE) que, em 2021, a nível nacional, revelou uma percentagem de 3,1%. Um número abaixo dos 5,2% registado dez anos antes. O retrato no interior de Portugal não é tão animador, ainda que se tenha vindo a fazer um caminho inverso, e prova disso é o trabalho desenvolvido pelas Bagos D’Ouro.
O futuro da Bagos D’Ouro: manter a proximidade
Nos seis concelhos existem coordenadores técnicos distribuídos, psicólogos educacionais e técnicos, atentos e próximos ao contexto estruturante e profundo onde estão sediados. Neste momento, segundo o Relatório e Contas de 2022, a associação presta apoio a 193 crianças e jovens. No ano letivo anterior de 2021/2022 foram 102 as famílias acompanhadas.
Em São João da Pesqueira, a coordenação está ao cargo de Susana Gama. Natural de Lamego, conheceu a associação através de uma amiga que trabalhava no Museu do Douro e rapidamente percebeu que o seu caminho seria na associação. A proximidade é fulcral. O apoio fornecido vai desde o 1º ciclo até ao momento em que o aluno entra no mercado de trabalho. As sessões são realizadas através de uma metodologia específica e, no que ao 1º e 2º ciclos dizem respeito, é trabalhada a regulação a nível emocional e comportamental, bem como a autorregulação no estudo (estratégias de organização para a preparação dos testes e dos trabalhos de casa). No caso do 3º ciclo e secundário é prestado um apoio mais a nível vocacional onde são promovidas visitas durante uma semana a várias empresas e quintas “para que possam ter uma amplitude maior de oportunidades de trabalho”, refere Susana.
Para a gestora, fazer parte do percurso de transformação destas crianças é uma mais-valia. “Todos nós, equipas de terreno, sentimo-nos um pouco como trampolim, porque caminhamos ao lado dos miúdos, no sentido de lhes darmos as mãos e de os amparar, mas para que eles nos usem e possam dar o salto.” Garantida esta ajuda a família nunca é deixada para trás. Nesse caso, a primeira abordagem da associação para com os familiares – depois da prévia sinalização realizada pelos parceiros estar concluída – é crucial sendo que, numa primeira fase, o contacto é feito através de um telefonema e, posteriormente, o gestor desloca-se a casa. Nessa visita a conversa centra-se no esclarecimento de dúvidas. “É aqui que tudo acontece. A verdade é que todos nós temos muito gosto em trabalhar na Bagos D’Ouro e, quando começamos a falar do nosso trabalho acho que transmitimos o entusiasmo que acaba por convencer as famílias”. E acrescenta “Nós temos como premissa respeitar o tempo de cada família. Portanto, explicar quem nós somos, a nossa metodologia, aquilo que nós queremos com as crianças que é levá-las mais longe, mas sempre incluindo a família como peça integrante nesse caminho.”
O interior continua a desertificar. A questão que se coloca é: há esperança nesta juventude cada vez mais qualificada, que continua a não se fixar na sua terra de origem? A resposta foi dada pelo pároco de São João da Pesqueira que acompanha de perto o que estes alunos sentem. “Uma ingratidão”, diz-nos. E acrescenta “Quando, aqui, o mercado de trabalho não tem tanta oferta como no Litoral é este tipo de frustração de não encontrar no seu próprio meio a realização pessoal ou profissional do qual fizeram todo o caminho para lá chegar.” O objetivo principal é poder garantir que os jovens consigam obter os seus cursos e possam “sentir-se felizes”, embora haja o esforço de os fazer perceber que há uma parte de Portugal que, a cada dia, envelhece e se torna esquecido.