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Às 18h30 de uma terça-feira, cerca de uma dezena de pessoas estavam reunidas na Sede Social dos Bombeiros Voluntários de Viseu, na rua José Branquinho. Duas encenadoras e oito atores. A atriz mais nova tinha cinco anos e a mais velha tinha 85 anos. Tirando Maria Isabel Ferreira, a atriz octogenária mais jovem de sempre, os restantes membros eram, na sua maioria, crianças com menos de 14 anos. Dois jovens, contudo, estavam já na casa dos vintes.
A sala de reuniões da Sede Social dos Bombeiros estava cheia de cadeiras dispostas em cinco filas. Na parte de trás, um tripé de metal em cada lado com dois holofotes. Na frente das cadeiras, o palco, com um grande livro aberto a saltar à vista. Em cima da primeira fila de cadeiras, as mochilas, os casacos e as garrafas de água
Uma das encenadoras, Filipa Fróis, sentou-se na primeira fila, por entre mochilas e vestuário. De pernas cruzadas, com o computador apoiado nos joelhos, seguia com atenção o guião da peça, enquanto se preocupava com as falas, as posições e as entradas dos atores. Por trás das cortinas, Márcia Leite, a outra encenadora, controlava as transições dos mais novos, assim como a gestão de adereços que ficavam atrás das cortinas negras. Constança, de cinco anos, aproveitava os momentos em que não estava em cena para circundar as cadeiras, junto de Filipa. Camisola com um desenho do Stitch e uma mochila prateada às costas, lá ia de vez em quando sorvendo água da sua garrafa, um daqueles termos com uma palhinha embutida.
Durante as cenas, o tempo era ainda de gralhas e de momentos de hesitação que fazem parte dos dias que antecipam a estreia. Um jovem de sete anos que representava o pai do protagonista olhava para o teto, enquanto, anca a balançar para a esquerda e para a direita, tentava lembrar-se das suas falas. “Pedro, tenta alinhar-te com o fim da cortina”, ajudava Filipa Fróis, sempre atenta ao posicionamento dos personagens. Pedro, com não mais que sete anos, pegava num enorme livro, enquanto exercitava a memória e os seus dotes de vocabulário.
“Um tratamento opeo… ope… opeopático”, avançou, hesitante. “Um tratamento homeopático, queres tu dizer”, foi-lhe sugerido. “Isso, um tratamento homeo… omeo.. opeo… opeopático!”
Por entre transições, lá havia um objeto ou outro que ficava fora do lugar, ou que devia (ou não) ter entrado na cena. Uma caixa em forma de paralelepípedo que servia de escrivaninha e de banco, ora com um globo terrestre ora com uma caveira na sua face voltada para cima. Uma mesa de jantar no meio do palco e umas cadeiras fazia de sala de jantar. “Olhem, o jantar afinal é um livro”, disse uma das crianças, apontando para o livro deixado em cima da mesa. O ataque de riso foi geral.
Uma ComUnidade onde é possível uma jovem atriz vir a ser encenadora
A peça, “Olhar que não vê”, aborda a história de Leopoldo, um rapaz que não compreende porque é que os pais passam os dias “com os seus narizes enfiados em livros” e porque insistem em oferecer-lhe um livro no aniversário. Uma adaptação da obra “O Menino que não Gostava de ler”, de Susanna Tamaro, a peça em estreia pela ComUnidade, projeto da ZunZum, sobe a palco este sábado às 18h30. Apresentado na Sede Social dos Bombeiros Voluntários de Viseu, na Rua José Branquinho, o espetáculo volta a palco no domingo, tanto às 16h30 como às 18h30.
O projeto ComUnidade, criado por Márcia Leite em 2012, é aberto a todos aqueles que queiram participar e experimentar artes performativas. Ao longo de uma temporada, que corresponde aproximadamente a um ano letivo, Márcia Leite, em conjunto com Filipa Fróis, trabalham com um conjunto de pessoas e desenvolvem um espetáculo. Uma autêntica comunidade que contribui não apenas na atuação, como na construção da cenografia e dos figurinos. No final, o fruto de cada temporada é apresentado de forma individual como em festivais de teatro, com especial destaque para o Festival de Teatro de Viseu.
“Além de nos desafiarmos a nós como profissionais, criadores que orientam ou dirigem o projeto, também tentamos ir de encontro ao grupo que recebemos ou para quem abrimos as portas. Nesse sentido, de acordo com a vontade do grupo, tentamos ir de encontro porque é um processo de facto muito democrático, de muita escuta”, começou por explicar Márcia Leite.
Ao Jornal do Centro, Filipa Fróis contou ter havido um aumento do número de participantes, embora não varie muito de temporada para temporada. Além disso, muitos dos participantes acabam por permanecer de um ano para o outro. “Neste momento, é para aí metade pessoas novas e metade do passado”, explicou Filipa Fróis. A escolha de participar num projeto como este pressupõe um ensaio semanal durante a manhã de sábado durante cerca de cinco meses, e ensaios diários na semana que antecede a apresentação do espetáculo. “Tentamos ir um bocado de encontro àquilo que a comunidade pode dar, porque é uma relação de simbiose, não funciona se nós não os tivermos”, contou Filipa Frois. “Tentamos mesmo ir de encontro à quilo que funciona para eles e para nós, porque enquanto duo, também vamos tentando estar sempre as duas, mas também nos apoiamos muito no sentido de quando uma tem um trabalho profissional ou algo à parte”, disse ainda a jovem encenadora.
Filipa Fróis é o maior exemplo da influência do projeto ComUnidades. Na primeira edição, ainda em criança, Filipa foi uma das ‘atrizes amadores’ presentes no projeto orientado por Márcia Leite (na altura a terminar um mestrado na área das artes performativas). “Foi a primeira vez que eu fiz teatro”, confessou Filipa. “Não sei em que edição é que me juntei lado a lado, penso que foi na décima”, contou ainda.
“Eu acho que é esse tempo que o projeto já leva que permite, ano a ano, irmos adquirindo novas estratégias e maneiras de o fazer funcionar, porque, apesar de tudo ser ma vez por semana, é pouquinho tempo”, explicou a jovem encenadora, também ela, entretanto formada em teatro. “Então esta possibilidade de ter uma base de um texto pré-existente que, para nós, tem alguma coisa a dizer ao público, serve também aqui um bocado de âncora para um grupo que só pode estar poucas vezes junto”, explicou Filipa Fróis. O projeto, contudo, já apresentou peças originais. Atualmente, a adaptação de “O menino que não Gostava de ler” conta ainda com conceção musical original de Leonardo Outeiro e cenografia feita pela oficina do Zé Ferreiro, em colaboração com os participantes. Na interpretação estão Constança Marcelino, Eduardo Gomes, Filipa Pinto, Francisca Mendes, Guilherme Leite, Leonor Amaral, Leonor Gomes, Luís Almeida, Maria Isabel Ferreira e Pedro Mendes.
Embora os participantes no projeto sejam na sua maioria crianças e jovens, uma das regras, apontaram as encenadoras, é não infantilizar. “Os exercícios que nós fazemos com eles são aqueles que nós profissionais fazemos fora daqui com outros grupos profissionais. Claro que temos atenção ao indivíduo, mas a ideia é potenciar-lhes uma experiência teatral de qualidade”, esclareceu Filipa. Um teatro de qualidade para as famílias, mas que não é teatro infantil, é essa a regra seguida pelas encenadoras à frente do ComUnidades.
A peça sobre livros representada por “pessoas que se escondem debaixo dos lençóis à noite com a luzinha a ler”
“Olhar que não vê” trata-se, no fundo, de uma peça com várias camadas, em que além da preocupação com a relação entre os mais novos e a leitura, está a preocupação em explicar o que é comunicar. “Queremos fazer pensar o que é esta relação das crianças com o mundo dos adultos, a relação com o livro e em que medida é que a nossa sociedade contribui no seu dia-a-dia sem ser exclusivamente na escola”, explicou Márcia Leite.
Filipa Fróis foi mais longe e explicou que “também há ali casos muito concretos que espelham aquilo que é nosso grupo, do mais novinho ter acesso a falar com uma pessoa mais velha”. “No caso, não são representados pelo mais novo e pelo mais velho do grupo, mas são por intermediários”, disse ainda Filipa. Além disso, outro tópico abordado em “Olhar que não vê” prende-se com o questionar sobre “porque é que as coisas nos são impostas versus nós próprias termos uma viagem até elas”.
De modo a preparar os participantes do projeto, foi realizado um workshop em que cada um teve de criar cenas a partir de trechos do livro original, embora o grupo da ComUnidade tenha “pessoas que se escondem debaixo dos lençóis à noite com a luzinha a ler”. Além disso, o grupo juntou-se durante dois domingos seguidos para criar parte do cenário, em especial para as pinturas que envolveram a construção do livro gigante.
“É importante eles terem acesso àquilo que leva até um espetáculo estar pronto, porque há várias etapas. Mesmo ontem estivemos a frisar junto deles a importância de cada adereço em cena, que é uma ‘jóia’, porque há coisas aqui que nós trouxemos que são nossas, pessoais”, explicaram as encenadoras ao Jornal do Centro.
O espetáculo, inicialmente, vai ser apresentado na Sede Social dos Bombeiros, mas terá depois lugar no Festival de Teatro Amador de Viseu, no início do verão. “Os meus avós não vêm este fim de semana porque não sobem as escadas, mas reconhecemos a necessidade das pessoas em relação à importância deste espaço, e iremos depois fazê-lo no festival”, explicou Filipa. “para proporcionar essa experiência aos jovens de fazerem parte de um festival e de verem outras peças, de se interessarem por um todo, não ser só o ego do artista, mas também poder levar este projeto a um espaço mais convencional e com outras condições técnicas e para outros públicos”, adiantou ainda a jovem encenadora.
No final, as encenadoras convidaram o público para assistirem a um projeto que “cresce a cada ano que passa” quer através do próprio amadurecimento dos seus participantes ao longo dos anos, quer através da evolução das propostas artísticas. “Temos aqui o Gui, que tem agora 21 anos e entrou com oito, eu entrei com 11 e tenho 24, e o Eduardo, que entro com cinco, tem agora oito e vai ser um dos personagens principais, o que também é um grande desafio para ele e acho que isso é lindo, assumiu a encenadora mais jovem, anteriormente atriz do ComUnidade.
“Temos o Pedro, que é a primeira vez que vai fazer e que precisa muito do nosso público para ele ter vontade de fazer isto, porque às vezes preferia estar lá fora a brincar”, concluíram.