Manuela Barreto Nunes
OPINIÃO
Incidente em Antares, de Erico Veríssimo
17 de janeiro de 2021, 08:00
“Dona Quitéria sacode a cabeça num movimento afirmativo. Erotildes, Pudim e Menandro a imitam. Barcelona, porém, hesita:
__ Primeiro quero conhecer melhor o plano.
__ Simples. Descemos juntos pela Rua Voluntários da Pátria ruma da Praça da República. Lá nos dispersaremos, cada qual poderá voltar à sua casa… Para isso teremos algumas horas. O essencial (prestem a maior atenção!) é que quando o sino da matriz começar a dar as doze badaladas do meio-dia, haja o que houver, todos devem encaminhar-se para o coreto da praça, sentar-se nos bancos em silêncio e ficar à minha espera.
__ E que é que você vai fazer? – quer saber João Paz.
__ Vou primeiro à minha casa buscar uns papéis importantes… Depois me dirigirei à residência do prefeito para lhe entregar um ultimato verbal… ou nos enterram dentro do prazo máximo de vinte e quatro horas ou nós ficaremos apodrecendo no coreto, o que será para Antares um enorme inconveniente do ponto de vista higiênico, estético… e moral, naturalmente.”
Este é um excerto do derradeiro romance do genial escritor brasileiro Erico Veríssimo, em Portugal editado pela Livros do Brasil, mas infelizmente hoje esquecidos autor e livro, no pobre mundo literário português.
Mas que autor! E que história, tão adequada para libertarmos algum riso, quiçá amargo, no tempo sanitário, social, cultural e político que nos cabe viver. Pois sabe o que aconteceu, leitor? É que, na cidade de Antares, governada por “poderosos, infames e malucos”, dá-se uma greve geral. Nela participam os coveiros, nesse dia em que se dá uma coincidência inusitada: morrem sete pessoas, que ficam por enterrar. Com o calor a apertar, os cadáveres começam a apodrecer e, indignados, os mortos revoltam-se: do sapateiro anarquista ao advogado poderoso, do suicida pianista à prostituta tuberculosa, morta por falta de assistência hospitalar, todos se unem para contestar a falta de respeito, denunciando de caminho os podres e a corrupção da cidade. Sentados no coreto central, e à medida que o tempo passa e o fedor alastra, semeiam o caos na moral das ditas “pessoas de bem” que mal governam a urbe.
Áh, como estamos precisados de mortos no coreto!

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