Autor

David Duarte

11 de 06 de 2022, 08:30

Colunistas

Fragmentos de um Diário - 24 Setembro 1981 (continuação V)

Por fim, o mundo acabou. A vida terminara. Era o fim do tempo da alegria


Respondi-lhe que sim, que o que ela dizia era verdade, mas que eu não tenho a firmeza dela, sou vulnerável, fui infiel, aproximei-me de outras, não sei se por paixão ou leviandade.
Ela levantou-se ligeiramente de modo a posicionar-se em cima do meu peito e, ao meu ouvido, disse que tudo isso eram insignificâncias explicáveis pelo afastamento.
Preferi abrir-me por inteiro, nada esconder das minhas fragilidades. Sobretudo, ao nível da sexualidade. Ela aceita-me como sou, disse, compreende que, mesmo que nos vejamos a partir de agora todos os anos, são muitos meses de ausência e a tentação mora ao lado. Ela vive com objetivos, o pagamento das casas, os estudos, as leituras. Por isso, mas sobretudo pelo amor que viveu e que sente, são-lhe indiferentes os homens. Nem tempo tem de os conhecer. A mim conhece-me o suficiente para saber que também eu estou marcado pelo selo do amor e que por isso não serão significativos os breves desvios que ocorram. Se resisti estes anos, eis a prova de que ela precisava para reforço da sua fé em nós.
Em desespero, quis prometer-lhe que, ao terminar o curso, satisfazendo o sonho dos meus pais, daria por cumprido o meu compromisso para com eles, e emigraria para junto dela. Pediu-me para não ser tolo. Quando terminar a licenciatura, devo candidatar-me ao ensino e ser professor. Ela própria espera terminar o curso e conseguir equivalência em Portugal para talvez também ser professora, senão no ensino público, no privado.
Nessa noite não falámos mais, uma outra linguagem, a dos sentidos, nos fez percorrer outros canais de comunicação, mais profundos, mais ontológicos, mais sublimes. E não era o gozo básico que nos empolgava, mas um sentimento de elevação sensorial que já em Lisboa nos era dado viver, e que não cabe em nenhuma descrição meramente fisiológica. Era algo de um teor epifânico. De êxtase foram estes dias.
Por fim, o mundo acabou. A vida terminara. Era o fim do tempo da alegria. Apanhámos o comboio numa manhã. Mais adiante, mudei de estação e ela continuou para Berna. Fiquei a vê-la até se diluir no horizonte.
Cheguei a Portugal e aqui estou, depois do paraíso. Já não sou o mesmo, já não posso ser o mesmo, algo de radical mudou em mim. Sou outro.