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Jorge Adolfo

27 de 04 de 2024, 18:00

Colunistas

O meu 25 de Abril

Aprendi na escola, até ao 25 de abril, que Portugal era constituído por duas partes: Metrópole e Ultramar. E que grande era esse Ultramar. Os mapas pendurados na sala de aula assim o demonstravam.

jorge adolfo

1.
Estou a ver no meu portátil, pela enésima vez, diga-se, uma reportagem da RTP, datada de 7 de abril de 1975, intitulada “Ação Cívica do MFA em Viseu” Este extraordinário documento fílmico do arquivo audiovisual da Rádio e Televisão de Portugal, a preto e branco, com 5 minutos e 25 segundos de duração, infelizmente sem som, constitui uma janela que se abre para o passado, para um período que me marcou profundamente e que agora evoco.
As imagens gravadas pela RTP nos dias 5 e 6 de abril começam por nos mostrar a atuação da Banda da Marinha no Rossio, junto à estátua do Infante D. Henrique que ali ainda se encontrava, rodeada por um numeroso público entre o qual se encontravam muitas crianças. Como nos filmes da era do cinema mudo, imaginamos o som ambiente do momento e as palmas que irrompiam quando os militares músicos terminavam cada uma das músicas do seu reportório.
As imagens seguintes mostram outro momento da campanha cultural que se desenvolveu nesses dias primaveris: a pintura de um mural na fachada da Caixa Geral de Depósitos, na Rua Gaspar Barreiros.
Os andaimes a envolver o torreão saliente do edifício, até ao segundo andar, permitiam aos artistas plásticos vindos de Lisboa e do Porto dispor de uma extensa área granítica onde pintar em letras gigantes e rubras as iniciais MFA e as palavras dominantes do léxico revolucionário de então: Revolução, Liberdade, Povo e Democracia. Como uma onda, as crianças acabaram por espalhar a sua criatividade pelas paredes do edifício da CGD e dos que lhe estavam pegados naquele que era o pátio da antiga e castiça taberna “O Escondidinho”.
Para além do programa pictórico pré-definido por Rodrigo de Freitas e Marcelino Vespeira, a criançada, sob o olhar dos mais velhos que acompanhavam os progressos daquela obra de arte pública, fez daquelas paredes um verdadeiro jardim das delícias, um campo de liberdade que lhes prometeram no dia 25 de Abril.
Ali revejo muitos adultos que conhecia da cidade e crianças da minha idade que, como eu, usaram as trinchas e os pincéis e brincaram com as cores e formas naquela manifestação de liberdade coletiva.
O Parque da Cidade Aquilino Ribeiro foi o terceiro local onde se recolheram imagens deste pequeno filme.
Dezenas de crianças e adultos rodeavam um grupo de palhaços que com os seus diálogos cómicos e as suas momices provocavam a risada de todos, em especial dos mais novos.
O documento da RTP termina com um breve regresso ao mural, onde se constata a grande adesão popular que tal iniciativa teve.
2.
O mural da CGD que também ajudei a criar nessa Primavera revolucionária já não existe. Não existe fisicamente. Ficou na memória dos que nele participaram e nos registos fílmicos e fotográficos que agora redescobrimos.
3.
Não tenho qualquer recordação do dia 25 de abril de 1974, esse dia “inicial inteiro e limpo / onde emergimos da noite e do silêncio”, citando os belos versos que Sophia de Mello Breyner escreveu nesse momento genesíaco da nossa vida democrática.
Dizem-me que, apesar dos comunicados radiofónicos desse dia, fui à escola. Era a Escola do Magistério Primário, onde atualmente é a Escola Superior de Educação de Viseu. Destinos.
Não sei se o Professor Agnelo também por lá apareceu. Talvez tenha aparecido.
Também não tenho qualquer recordação da enorme manifestação de agradecimento, regozijo e apoio aos militares do Regimento de Infantaria 14, organizada dois dias depois da Revolução.
Os jornais locais e os nacionais noticiaram esse mar de gente que, partindo do Campo de Viriato, atravessou a cidade com bandeiras nacionais, cartazes improvisados com vivas à Revolução, ao General Spínola, a Costa Gomes, à Junta de Salvação Nacional, e Zés Pereiras de Vildemoinhos a marcar o ritmo. Mais uma vez, as imagens gravadas pela RTP nesse dia dão-nos uma dimensão da enorme euforia que se vivia naquele momento, naqueles dias.
Entre os muitos milhares que vejo desfilar, encontro muitos conhecidos, mas mais importante, agora, é que também encontro os meus pais, de braço dado, por ali fora. A poesia saíra à rua como imortalizaria Vieira da Silva na sua obra icónica. Era a poesia em forma de cidadania.
4.
Aprendi na escola, até ao 25 de abril, que Portugal era constituído por duas partes: Metrópole e Ultramar. E que grande era esse Ultramar. Os mapas pendurados na sala de aula assim o demonstravam.
Também aprendíamos que havia muitas linhas de caminho-de-ferro e muitos rios, uns a nascer por cá, outros por Espanha. Claro, o maior entre os totalmente nossos, era o que vinha lá da Serra da Estrela ou Monte Hermínio, onde Viriato, o Guerreiro Pastor, fazia a vida negra aos romanos. E aprendíamos muito mais coisas sobre esse nosso Glorioso País-Império.
Pouco depois, o Nosso Império entrou-nos pela sala de aula. Os nossos novos colegas, vindos dessas paragens longínquas, eram diferentes. Vestiam-se de forma diferente. Falavam de coisas ignotas para os de cá. Conheci-os melhor, estive nas casas pré-fabricadas de alguns mais amigos. Compreendi-os. O tempo e as futeboladas ajudaram a recompor tudo, ou quase tudo.
Viva o 25 de Abril.