Carlos Eduardo

24 de 02 de 2024, 11:01

Desporto

Quando ao ódio se responde com golos

Kokora e Junior são as mais recentes vítimas de racismo no futebol distrital. Os atletas foram insultados enquanto faziam o que mais gostam. Junior ouviu sons a imitar um macaco. Kokora foi alvo de insultos com base na cor de pele. Magoou muito, confessam. Em Piães, adepto foi detido e está afastado dos estádios. Que papel devem assumir os clubes? Estamos todos a fazer a nossa parte? Depois do ódio, Kokora respondeu uma semana mais tarde com dois golos decisivos num jogo importante. Neste momento, o placar da vida marca Kokora e Junior 2-0 Racismo

kokora jogador futebol

Fotógrafo: Jornal do Centro

“Vai para a tua terra. Preto. Macaco”. 11 de fevereiro de 2024. Albert Kokora, 31 anos, natural da Costa do Marfim, joga futebol num clube dos distritais de Viseu. Em Piães foi, uma vez mais, vítima de ódio. Ao Jornal do Centro, o atleta do Carvalhais diz que os insultos racistas não são de hoje. “Não sabemos quando é que isto vai parar”, começa por referir, num tom visivelmente emocionado. “Ouvimos sempre que nos insultam. Chamaram-nos pretos, macacos, disseram para irmos para a nossa terra”, detalha.

Nas primeiras vezes em que foi insultado por causa da cor da pele, enquanto jogava futebol, Kokora reagia. Nessa fase, revoltava-se contra quem atirava ódio para o relvado. “Agora já estou farto. É sempre a mesma coisa. Já não reajo mais. Só ouço e faço o meu trabalho. Claro que me magoa. Se reagir, nada vai mudar. Então, pronto…”, diz. Depois da pausa, que as reticências ilustram, Kokora partilha que das bancadas vieram insultos para ele e para um colega de equipa. Continuaram focados no jogo e, no fim, as autoridades foram ter com o atleta costa-marfinense para lhe dizerem que, por ser crime público, o caso iria seguir avante. Para a Justiça solucionar.

APCVD aplaudiu atuação rápida da GNR
O caso foi tornado público pela Autoridade para a Prevenção e Combate à Violência no Desporto (APCVD), que tem sede em Viseu. A Autoridade deu conta, em nota oficial, de que "um homem de 35 anos, residente em Cinfães, foi proibido de entrar em recintos desportivos pela Autoridade para a Prevenção e o Combate à Violência no Desporto (APCVD), após ter sido identificado pela Guarda Nacional Republicana (GNR) na sequência de insultos racistas ao jogador do Carvalhais FC, Albert Kokora".

Explica a APCVD que "fruto da colaboração e rápida atuação da GNR, o adepto suspeito foi esta tarde notificado da medida cautelar decretada pela APCVD". Diz o organismo que "na sequência da medida cautelar, o adepto ficará impedido de aceder a recintos desportivos até final do processo de contraordenação". "De acordo com o atual regime jurídico, em caso de condenação, o infrator poderá estar sujeito a coima entre os 1.750 e os 50.000 euros e sanção acessória de interdição de acesso a recintos desportivos até 3 anos", refere a Autoridade. Se não cumprir o que foi decretado, o homem pode incorrer no crime de desobediência e poderá ser detido pela polícia.

Kokora pede que clubes tenham posição mais firme
Albert Kokora defende que os clubes devem ter uma postura mais ativa. Para o jogador do Carvalhais, que mora em Portugal há 12 anos, multar não é suficiente. “Os clubes têm de agir e não deixarem as pessoas entrar nos jogos. Acho que não estão a fazer tudo”, lamenta.

Simão Russo é treinador de Kokora no Carvalhais. O técnico assume que não se apercebeu de nada porque, além da distância, estava focado em ganhar o jogo. Em causa estava e continua a estar a subida à Divisão de Honra da Associação de Futebol de Viseu. O encontro entre Carvalhais e Piães contou para a primeira de 14 jornadas. “A melhor resposta que podemos dar é no campo. Nesse jogo, o Kokora não marcou, mas esteve muito bem”, elogia o técnico. No jogo seguinte, frente a um dos maiores rivais, Kokora foi o jogador em destaque ao apontar os dois golos da vitória diante do Carregal do Sal. Sobre o que há a fazer para que episódios destes fiquem cada vez mais à porta dos estádios de futebol ou deixem mesmo de existir, Simão Russo entende que os clubes têm feito o seu papel. “Têm sensibilizado. O clubes podem fazer e fazem”, atira, ressalvando que ninguém pode apoiar o racismo. No futebol distrital há vários anos, o técnico assume que nos tempos que correm se assiste a melhorias, mas assume que “não é fácil controlar o que se ouve nas bancadas”. “É inadmissível isto acontecer”, remata.

Depois de Kokora, o futebol distrital corou de vergonha com novo caso
E como se um caso não fosse suficiente para ensombrar o futebol distrital, uma semana mais tarde, no mesmo campeonato, na mesma fase de subida, um novo episódio. Desta vez, o alvo do ódio racista foi Junior Giz, jogador do Piães. “Até ao intervalo estava tudo tranquilo. Na segunda parte, cada vez que eu tocava a bola, eu ouvia um som a imitar um macaco. Ouvi umas três ou quatro vezes. Falei com o árbitro mais do que uma vez a dizer que estava a ser insultado e prometeu anotar no final. Pensei abandonar o jogo, alguns dos meus companheiros evitaram isso porque precisávamos do resultado”, lamenta.

Ao Jornal do Centro, o jogador brasileiro de 23 anos, faz uma das confissões mais difíceis da sua vida. “Afetou-me muito. Fiquei bastante triste. No fim do jogo, desci para os balneários e chorei muito”, conta. Há seis meses a viver em Portugal, Júnior afirma que “é muito triste em pleno século XXI perceber que ainda existem pessoas assim, más, que criam este tipo de situação”. “Ninguém devia ser julgado pela cor. Somos todos iguais”, frisa.

Junior entende que clubes devem ser mais punidos para alertar adeptos
No futebol, assume, foi a primeira vez que foi insultado com base na origem e na cor de pele. Mas fora dos relvados, este não foi o único episódio de discriminação. “Já sofri preconceito por ser brasileiro”, reconhece. “Somos todos iguais. Não é uma cor que nos define. Há apenas uma raça: a humana. E seria um ótimo passo para Portugal se preparar para o Mundial de 2030”, lembra. A edição do maior evento de futebol a nível mundial terá a participação de Portugal, Espanha, Marrocos e três jogos agendados para a América do Sul.

Numa medida que tomaria para começar a limpar o racismo do desporto que mais pessoas apaixona em todo o mundo, Junior defende que os clubes “têm de começar a ser penalizados”. “Se os adeptos começarem a perceber que o clube pode ser punido, talvez isto pare. Os clubes devem evitar isto. Passar a imagem de anti-racismo. E tem de haver lei. Só assim vamos acabar com isto”, refere. Se tornar a ouvir insultos, o jogador brasileiro promete logo dirigir-se às autoridades presentes no estádio. Sobre o único episódio de que foi alvo, tem apenas uma vontade: o caso não ficar por aqui.

GNR promete continuar atenta, AFV condena e diz que tem ações para dissuadir insultos
E é para que o racismo deixe de rimar com futebol que as autoridades fazem o policiamento de eventos desportivos. O Tenente Coronel Campos Marques, Relações públicas da GNR de Viseu explica que as autoridades marcam presença para “garantir a segurança do evento”. “À partida, sabemos que o futebol e determinados locais ou fases dos campeonatos, por vezes geram alguma confusão. Temos de ter sensibilidade para lidar com as situações”, assinala. O militar acrescenta que alguns conflitos nas bancadas “não configuram nenhum crime” e aí a pessoa é chamada à parte. “Outras situações há que não é assim e temos de atuar sob o ponto de vista policial e criminal”, explica.

Numa reação aos dois casos, o presidente da Associação de Futebol de Viseu (AFV), José Carlos Lopes lamenta que continue a haver racismo no futebol. “A minha vontade é que possamos erradicar episódios destes”, sublinha. O responsável entende que o futebol deve continuar a missão de sensibilizar para estas questões, rumo à eliminação de episódios de insultos racistas num desporto que mobiliza milhões de pessoas em todo o mundo. “As ações sobre fairplay têm esse propósito”, vinca o líder do futebol e do futsal do distrito de Viseu.

Episódios vividos por Kokora e Junior não são únicos no distrito
Está a passar um ano desde um outro episódio que fez soar os alarmes do futebol distrital. Uma criança de 12 anos foi, em março de 2023 alvo de racismo num jogo que pôs frente a frente os sub14 do Sport Clube de Tarouca e do Grupo Desportivo de Oliveira de Frades. O jogo dizia respeito à Taça de Ouro organizada pela AFV. O insulto racista veio da bancada. Ao que o Jornal do Centro conseguiu apurar na altura, o adepto chamou "preto de m****" à criança. A criança, reforce-se, tinha 12 anos. O homem acabou proibido de entrar em recintos desportivos. A criança acabou a chorar junto ao banco de suplentes. O adepto tinha 54 anos.

Um mês antes, em fevereiro de 2023, o Cracks Clube de Lamego queixou-se de um jogador das suas fileiras sido alvo de comentários racistas durante o jogo de sub-16 que opôs a formação lamecense ao Clube Desportivo de Cinfães.

Olhando para o relatório da violência associada ao desporto, respeitante à época de 2022/2023, houve 50 adeptos interditos de entrar em recintos desportivos em provas distritais de futebol, em todo o país. No final da época de 2021/2022 foram, no total, 15 adeptos impedidos de entrar em recintos desportivos em contexto de futebol distrital. Para se ter uma ideia, de 2021/2022 para 2022/2023 houve um aumento de mais de 200% de interdições. O futebol distrital foi, de resto, logo depois da Primeira Liga, o escalão com um maior número de adeptos impedidos de entrar em estádios.

Mais uma centena de casos envergonham futebol português
Mas os números não ficam por aqui e mostram uma realidade que nem sempre se encara de frente. Desde o início da atividade da APCVD, em 2019, foram registadas 110 situações relacionadas com racismo ou xenofobia em contexto de espetáculos desportivos, 39 das quais foram encaminhadas para o Ministério Público por existência de indícios de prática de crime e as restantes 71 deram lugar a processos de contraordenação instruídos pela APCVD.

Dos casos que ficaram nas mãos da Autoridade, foram terminados 49 processos: 28 decisões condenatórias, 25 delas de caráter definitivo. Para além das multas que podem variar entre os 1750 euros e os 50 mil euros, 25 pessoas ficaram impedidas de entrar em estádios de futebol por insultos de âmbito xenófobo ou racista. Mas os números não ficam por aqui. Só durante esta época desportiva, 2023/2024 a APCVD já registou 11 denúncias de situações de racismo ou xenofobia em contexto de espetáculo desportivo. Em toda a época passada foram 39 as denúncias.

Presidente da APCVD confia que quanto mais denúncias houver, mais isolados vão ficar os racistas
O presidente da APCVD, Rodrigo Cavaleiro, assegura que tem sido feita uma sensibilização para que todos os casos sejam reportados. "O objetivo é o de chegar aos infratores e responsabilizá-los, mas também, e não menos importante mapear o maior número de ocorrências possível", explica o responsável. Rodrigo Cavaleiro acrescenta que mesmo que não se consiga indicar o presumível autor das ofensas, pelo menos, pode ter-se um "melhor conhecimento da realidade e uma noção mais aproximada do número total de casos".

Rodrigo Cavaleiro indica ainda que o número de condenações efetivas revela que "há consequências para estes comportamentos desviantes, o que, por sua vez, incentiva o aumento das denúncias". "Acredito que no futuro possa verificar-se um aumento do número de casos registados. O que não significa necessariamente um crescimento do problema mas um melhor conhecimento da sua dimensão real", frisa Rodrigo Cavaleiro.

O responsável acredita que quanto mais conscientes estiverem os adeptos para esta questão, mais pessoas não vão compactuar com o racismo e a xenofobia em contexto desportivo. "Os autores deste tipo de expressões de ódio vão ficando cada vez mais isolados", conclui Rodrigo Cavaleiro.