Geral

28 de 04 de 2024, 12:00

Diário

“Um povo sem memória é um povo sem história”, mas o arquivo Ephemera guarda-as para que não fiquem no vazio

Em Viseu, o arquivo Ephemera tem um ponto de recolha onde, quase diariamente, chegam memórias e lembranças em forma de livros, revistas, imagens ou objetos. No ano em que se comemora os 50 anos do 25 de Abril fomos descobrir que recordações desse tempo, e de outros, já por lá passaram

ARQUIVO EPHEMERA (2)

Fotógrafo: Jornal do Centro

“Um povo sem memória é um povo sem história e um povo sem história está fadado a cometer no presente e no futuro os erros do passado”. A frase é da historiadora Emília Viotti da Costa e aplica-se na perfeição ao povo português, sobretudo, no ano em que se comemoram os 50 anos do 25 de Abril. E, porque a memória faz-se de lembranças, fomos procurá-las para que nunca se esqueça o antes, o durante e o depois daquele dia onde nasceu a Liberdade. E encontrámos. Encontrámos livros censurados, uma moldura de “família” que junta o Cardeal Cerejeira, António de Oliveira Salazar e o general Carmona, cartazes com palavras de ordem de lutas antigas e atuais, jornais da época passados a “pente fino” pela censura ou livros sobre a condição da mulher antes do 25 de Abril. Os “tesourinhos” são do arquivo Ephemera, considerado o maior arquivo privado da Europa, criado por José Pacheco Pereira. Em Viseu está um ponto de recolha, desde 2020, no Instituto Politécnico, a “casa-mãe” é em Lisboa, e foi aqui que nos perdemos entre objetos e histórias que nos fazem arregalar os olhos de espanto (por bons e maus motivos). É que por se tratar de um arquivo que não é oficial, como os municipais, distritais ou nacionais, a história é-nos contada através das pessoas e dos seus bens. Bens que para muitos se tornaram “lixo”, mas que para o arquivo são tesouros. Naquela pequena sala encontramos de tudo, desde faturas, livros, diários, objetos ou cartazes. “O Ephemera é um arquivo omnívoro”, atira entre sorrisos Armando Ferreira, um dos 10 voluntários que todas as sextas-feiras se entregam de corpo e alma a separar, catalogar e arrumar as centenas de lembranças que ali vão parar. Entre os voluntários estão responsáveis das bibliotecas das várias escolas do IPV. “Este quadro foi encontrado escondido atrás de um móvel. Na imagem vemos o cardeal Cerejeira, Salazar e o general Carmona. Foi a filha de um antigo militar que o encontrou. O quadro esteve escondido desde que se deu o 25 de Abril. E é uma imagem curiosa, porque ao lado de Salazar e do general Carmona está o cardeal Cerejeira que nem se dava assim muito bem com Salazar”, conta Armando Ferreira. Não muito longe do quadro estava outro verdadeiro “tesourinho”: o primeiro jornal do Sport Lisboa e Viseu, hoje Sport Viseu e Benfica, clube que está a comemorar 100 anos. O sogro do doador desta relíquia foi um dos primeiros dirigentes do emblema. O exemplar, de 5 de agosto de 1928, não escapou ao olhar atento da censura e numa das páginas pode ler-se: “Este número foi visado pela comissão de censura”. Já os livros censurados e outros que surgiram após a revolução, assim como outros materiais alusivos à data, não estavam na sala, foram emprestados para integrar algumas exposições que estão a decorrer um pouco por todo o concelho e pelo distrito de Viseu. “O objetivo do arquivo é guardar e preservar a memória, mas com um objetivo ainda maior de depois partilhar essa memória”, frisa Armando Ferreira. Uma das exposições está patente na Biblioteca da Escola Superior de Tecnologia e Gestão, onde não faltam nomes como Miguel Torga, Aquilino Ribeiro, Manuel Alegre ou Vilhena. Outra mostra está na casa da Ribeira, com livros sobre a condição da mulher antes do 25 de Abril. Um deles é sobre a condição das telefonistas antes da revolução, tema que nos lembra que estas profissionais, assim como as enfermeiras ou as professoras, tinham que ter uma autorização para trabalhar. Há ainda uma outra exposição, “Artigo 45”, que está a percorrer as escolas do distrito. O nome da exposição refere-se ao artigo que permite as manifestações pública e a iniciativa pretende mostrar cartazes artesanais, feitos à mão. “Há cartazes com várias temáticas, desde a libertação das mulheres, a habitação, manifestações LBT, aborto e até relacionados com o presidente da Câmara Fernando Ruas”, explica Armando Ferreira, que acrescenta que foi lançado o desafio aos alunos para que, inspirados na exposição, “fizessem os próprios cartazes para que no final se organize uma exposição com esses trabalhos dos alunos”. As memórias de pessoas e de outros tempos Visitar o ponto de recolha do arquivo Ephemera é mergulhar em histórias do país, do mundo e das pessoas. Sabia que os soldados portugueses que partiram para a frente da batalha na Primeira Guerra Mundial, e que tiveram um papel importante contra os alemães, foram treinados e partiram do Regimento de Infantaria 14, em Viseu? Este episódio estava contado em várias páginas da Revista Ilustração Portuguesa e cujos exemplares foram parar ao ponto de recolha do IPV. Foi lá também que entregaram um conjunto de revistas da Segunda Guerra Mundial, em português e francês, que serviam para divulgar as ideias nazis em Portugal, uma coleção de documentos sobre a Opus Dei, entregue por um senhor que tinha um tio que era bispo e pertencia à Opus Dei ou uma coleção quase completa da revista Flama, desde o início, em meados de 1940, a até quando acabou, em 1971, encontradas na casa de um padre de Castro Daire. É também no ponto de recolha de Viseu que está um conjunto de documentação que remete para a primeira tentativa de trazer a universidade pública para Viseu (acabou por ir para Castelo Branco). Há documentos, cartas, ligações com o Governo Civil ou troca de informações com o Ministério da Educação. Mas nó é só Viseu que recebe “tesourinhos”, há pontos de recolha um pouco por todo o país, inclusive em Lamego com a colaboração do Museu Municipal. Em Viana do Castelo, por exemplo, foi entregue um conjunto de bíblias e livros de orações em que a grande maioria tinham lá dentro orações populares. No Barreiro está o arquivo pessoal de Sá Carneiro. E porque há histórias que dão livros, a Ephemera já editou vários manuais um deles intitulado “Amorzinho”. A obra conta a história de um casal de namorados que trocava correspondência nos finais dos anos 30, princípios dos anos 40, até 1943. “Numa limpeza de casa os netos encontraram um maço de cartas, com autorização da família, pegaram-se nessas cartas e criou-se um livro, que acaba por ser, além de uma história de amor, um retrato daquela época, da vida social, dos conhecimentos sexuais, como vivia um jovem naquela altura, como vivia uma jovem que veio da província para trabalhar numa casa, o que se via, o que se fazia no café, onde se ia ao teatro, casas de fado e teatro”, conta Armando Ferreira.

ARQUIVO EPHEMERA (1)

Fotógrafo: Jornal do Centro