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20 de 04 de 2024, 10:00

Diário

A voz é um bem precioso, mas estamos a cuidar bem dela?

As patologias relacionadas com a voz representam 10 por cento das cerca de mil consultas mensais realizadas pelo serviço de Otorrinolaringologia, da Unidade Local de Saúde Viseu-Dão Lafões. A voz é, provavelmente, uma das coisas mais importantes no nosso dia a dia, mas estaremos a cuidar bem dela? Sabemos os riscos que corremos? Os especialistas acreditam que não e quem a usa como “ganha pão” alerta para a sua importância. No dia 16 de abril assinalou-se o Dia Mundial da Voz

RASTREIO VOZ OTORRINO

Fotógrafo: Jornal do Centro

A voz é das coisas que mais usamos no dia a dia, mas estaremos a usá-la corretamente? Estamos a dar-lhe o devido valor? Sabemos os riscos que corremos se não cuidarmos dela? Os especialistas dizem que não, não sabemos usá-la e não a valorizamos.

As patologias relacionadas com a voz representam 10 por cento das cerca de mil consultas mensais realizadas pelo serviço de Otorrinolaringologia, da Unidade Local de Saúde Viseu-Dão Lafões (ULSVDL). Muitos doentes chegam já numa fase adiantada. “Infelizmente, a maior parte da patologia da voz já a apanhamos no serviço de urgência, situações já quase que diagnosticadas e com patologias tumorais. É muito raro apanharmos uma patologia tumoral na consulta”, explica Sérgio Raposo, diretor do serviço de Otorrinolaringologia da ULSVDL. Situações que acontecem porque “as pessoas desvalorizam e só vão ao médico de família numa situação tardia”.

O médico, que lidera uma equipa de 10 profissionais, admite que há uma desvalorização e um desconhecimento de alguns cuidados. “A voz é desvalorizada, apesar de ser fundamental para a nossa vida pessoal e profissional. Não são só os cantores ou as pessoas que atendem público que necessitam dela. A nossa voz é um bem precioso e se tivermos alguns cuidados como não gritar, não fumar, evitar um grande consumo de bebidas alcoólicas e evitar esforços da laringe podemos viver uma vida perfeitamente sã”, afirma, acrescentando ainda que, muitas vezes, não sabemos usar a voz. “Não sabemos quando gritamos ou quando estamos roucos e continuamos a falar e a ficar ainda mais roucos. Tudo isto provoca lesões na laringe”, alerta.

No caso de rouquidão, muitas vezes “desvalorizada por se pensar que passa”, o especialista alerta para os riscos. “Por exemplo, se temos um braço inflamado, se continuarmos a fazer esforço a inflamação vai aumentar, acontece o mesmo com a laringe. Se não estivermos em condições de poder falar corretamente é preferível parar uns dias e, se esse tempo for superior a 15 dias, devemos consultar o médico”, frisa.

Ao longo dos anos, o serviço tem feito uma grande aposta nas patologias da voz, nomeadamente para equipar a consulta externa. “Houve uma preocupação porque a consulta externa não estava equipada com aparelhos adequados para o diagnóstico da patologia vocal, com a nasofibroscospia”, explica Sérgio Raposo. “Temos uma torre 4K no bloco que nos permite uma visualização quase perfeita e tratar com mais eficiência a patologia vocal. Estamos num processo de aquisição de uma nova torre com a nova tecnologia de identificação de tumores, para a consulta externa, com a aquisição de mais nasofriboscópios com Full HD, para nos permitir fazer mais e melhores diagnósticos”, acrescentou.

Rastreios e alertas para assinalar Dia Mundial da Voz
Para alertar a população para os cuidados a ter com a voz, e como forma de assinalar o Dia Mundial da Voz (16 de abril), o hospital de Viseu realizou várias iniciativas. O rastreio da voz, que contou com cerca de 20 participantes, foi um dos momentos de destaque. O exame passa por visualizar a laringe para ver se tem lesões, se há tumores, se há situações inflamatórias ou de paralisia das cordas vocais, tudo observado num exame chamado laringoscopia. O rastreio é, fundamentalmente, indicado para pessoas acima dos 45 anos, que sejam fumadores ou consumidores de bebidas alcoólicas, por representarem um maior risco, mas pode ser feito por outras pessoas.

Olinda Fontes e Maria João Marques foram duas das pessoas que marcaram presença no rastreio, com o mesmo intuito, o de saber como está a saúde da laringe, mas por razões diferentes. Olinda Fontes já foi operada às cordas vocais e Maria João Marques quer evitar patologias. Ambas usam a voz profissionalmente.

“Sou professora e já fui operada duas vezes às cordas vocais, tive pólipos e nódulos. A última cirurgia foi há dois anos e como já tinha alta, soube do rastreio e decidi fazer, até porque tenho tido alguns episódios de rouquidão, o que me deixou um pouco preocupada e assim é uma forma de controlar”, explica Olinda Fontes.

A professora admite que foi a profissão que lhe trouxe os cuidados com a voz, admitindo que os cursos na área do ensino e educação deveriam incluir formação de colocação de voz e outras técnicas. “Acho que teria sido fundamental durante o curso termos formação de colocação de voz e penso que isso é uma falha nos cursos do ensino e educação”, afirma.

Além de professora, Olinda Fontes é cantora e, por isso, faz questão de alertar os alunos e quem a rodeia para os cuidados a ter com a voz. “Quando vejo que estão a falar mais alto, a gritar ou a pigarrear alerto-os. Estou sempre a dizer para beberem água, para hidratarem as cordas vocais e para não sussurrarem porque também faz mal”, conta.

Já quanto a iniciativas como a que decorreram no início da semana no hospital, Olinda Fontes frisa que “são importantes para que as pessoas possam controlar e ter mais cuidados”. “Estes rastreios ajudam-nos a perceber se alguma coisa está mal, mas também a sermos mais sensíveis a esta questão e a termos mais cuidados”, disse.

Já Maria João Marques, formadora de profissão, destaca a despreocupação que há com a voz. “Penso que as pessoas esquecem a voz, mas às vezes também é pela dificuldade que têm em utilizar determinadas regras no dia a dia. Enquanto estou a dar formação sei que não devo elevar a voz, mas às vezes esqueço. Por isso, é importante aprendermos e ter o cuidado de controlar”, refere.

Maria João Marques já era para ter participado no rastreio do ano passado, mas conta que “já foi tarde”. Este ano ficou atenta e conseguiu inscrever-se. “Dou formação e, no dia a dia, acabamos por esforçar a voz e acho que é importante ir vendo se está tudo bem”, conta, acrescentando que habitualmente tenta adotar “estilos de vida saudáveis” que lhe permitam cuidar da voz. “Não fumo, beber é raramente e tenho cuidado com a temperatura dos alimentos. Só tenho que melhorar a hidratação”, finaliza.

Sílvia Mitev e Sérgio Lucas dão a voz pela voz
Costuma dizer-se que só damos valor a alguma coisa quando a perdemos, mas quando se trata da voz há quem não possa imaginar-se sem ela. Sílvia Mitev e Sérgio Lucas são dois exemplos disso. Para os cantores, a voz é o bem mais precioso, não fosse ela o instrumento de trabalho ou como os próprios dizem “o ganha pão”.

Sílvia Mitev e Sérgio Lucas foram os convidados das celebrações do Dia Mundial da Voz no hospital de Viseu e deram a voz pela voz que tanto cuidam. Mas nem sempre foi assim, ambos admitem que não tinham muitos cuidados até escolherem a música como profissão.

“Quando a música se tornou a minha profissão passei a levar as coisas mais a sério. Quando era criança se calhar não tinha noção do que estava a fazer e em adolescente sofri muito da voz, muita ronquidão, não tinha tantos cuidados”, começa por contar Sílvia Mitev, que apesar de ter nascido na Bulgária, há muito que adotou Portugal, em particular Viseu, para viver.

Para a cantora profissional, com referências de jazz e fado, é fundamental que se tenham cuidados com a voz e que iniciativas destas se continuem a realizar. “Foi incrível e sinto-me feliz por estar aqui e ter recebido este convite. É também uma maneira de dizer obrigada a toda a equipa”, disse.

Também Sérgio Lucas fez questão de lembrar todos os que trabalham no serviço de Otorrinolaringologia do hospital, equipa que bem conhece. “Ainda há pouco tempo estive cá e um pouco mal. Mas os tratamentos do doutor Raposo e do departamento de ORL fizeram um bom trabalho”, disse entre sorrisos.

Para o cantor, natural de São Pedro do Sul, estas iniciativas são fundamentais, sobretudo para quem “não está a par das valências da voz, de como potenciá-la e protegê-la”. Sérgio Lucas admite que quando era jovem não tinha muitos cuidados. “Tudo começou quando a voz passou a ser o meu instrumento, talvez tenha começado aos 9 anos quando cantava no coro da igreja e já aí nos ensinavam algumas técnicas, ainda que fosse ao de leve. Quando percebi que era isto que eu gostava de fazer, comecei a ter aulas, a ter acompanhamento médico, consultas da voz, porque temos que saber usá-la. E, a partir do momento que é o nosso trabalho, temos mais cuidado”, frisa.

Sérgio Lucas lembra ainda que “quem trabalha profissionalmente com a voz é uma espécie de atleta de alta competição e quando chegam a uma cerca idade ou param, ou têm que se adaptar”. “Eu, que estou quase com 50 anos, já noto que há uma evolução desde os 20 até agora, mas nos próximos anos sei que vou ter que repensar a técnica, a colocação e a postura para conseguir chegar lá”, conta o músico, que afirmou ter “fumado muitos anos”. Agora, confessa, é “uma espécie de paizinho”. “Fumei muitos anos e quando deixei de fumar passava o tempo inteiro a dizer para não fumarem, para não beberem coisas frias”, disse, deixando ainda um alerta: “Tratem da voz!”