Carlos Eduardo

23 de 03 de 2024, 11:02

Diário

''Não nos permitimos ao silêncio. E esta via-sacra vai fazer-nos pensar se estamos a privilegiar o que é importante''

Nas vésperas da Semana Santa e às portas de um novo domingo de Páscoa, a Sé de Viseu acolhe uma via-sacra que promete não deixar ninguém indiferente. Relatos duros, histórias reais e testemunhos de vida que prometem aproximar os tempos de hoje à caminhada de Jesus Cristo até ao Calvário. A diretora do departamento dos Bens Culturais da Diocese de Viseu não tem dúvidas: este momento vai permitir refletir e viver no silêncio. Fátima Eusébio aplaude o trabalho de quem ajudou a tornar a via-sacra possível, enaltece os jovens e o papel que desempenham na Igreja e apela a todos, católicos e não católicos, que acolham mais e critiquem menos

fátima eusébio

É tempo de dar tempo ao silêncio. Por alturas da Páscoa multiplicam-se as iniciativas culturais e religiosas. E Viseu é palco este sábado, 23 de março, de uma via-sacra que decorre no claustro superior da Sé. “Queremos mostrar que a caminhada feita por Cristo continua a ser vivida na atualidade por muitos que sofrem. Todos nós temos as nossas Cruzes: mais pesadas, mais leves. As meditações vão servir como ponto de reflexão para quem as vai ouvir. Através delas vamos ser convidados a pensar se estamos a privilegiar o que é importante, perante o que vimos por esse mundo fora”, assinala Fátima Eusébio, diretora do departamento dos Bens Culturais da Diocese de Viseu. No fundo, diz, a via-sacra vai servir para “nos desinstalar, para nos questionarmos”.

Numa análise ao que vê ao redor, Fátima Eusébio assume sentir que “Cristo continua a sofrer e a ser crucificado quando assistimos a guerras, atrocidades que as pessoas continuam a cometer”. Para a também diretora do Secretariado Nacional Bens Culturais da Igreja, há um outro calvário. Um destino que, sustenta, hoje, tem a forma de um ecrã de computador ou telemóvel. “As redes sociais crucificam tanta gente. Com a emissão de opiniões sem sabermos o contexto dos acontecimentos… O criticar por criticar. É bom que haja uma oportunidade para acompanharmos estas diferentes cruzes e refletirmos sobre elas”, defende.

14 personalidades, 14 testemunhos, 14 formas de olhar o mundo
Foi a entidade que gere o património da diocese de Viseu quem pensou esta iniciativa. E na base está a necessidade de tornar mais real a mensagem bíblica da paixão e morte de Jesus Cristo. Por isso, Fátima Eusébio escolheu 14 personalidades que meditaram sobre cada uma das estações da via-sacra. “Pensámos uma via-sacra meditada e cantada de forma especial. Por um lado, vamos ter a leitura das passagens bíblicas correspondentes a cada uma das estações, mas cada uma das estações terá uma meditação. Esse momento terá pessoas da nossa sociedade. Procurámos selecionar personalidades com âmbitos profissionais e vivências diferenciadas. Partindo da estação que lhe atribuímos a pessoa vai refletir e meditar sobre ela. À luz daquilo que é a sua vida. Será uma reflexão pessoal”, sublinha Fátima Eusébio.

Como se de um quadro de vida se tratasse, cada um dos convidados vai procurar trazer memórias, vivências e, sobretudo, a sua verdade, relacionando-as com a estação da via-sacra. “Vamos ter a reflexão de uma pessoa ligada à política, que será a vereadora da Cultura na Câmara de Viseu, Leonor Barata, um padre, um polícia, uma mãe que perdeu uma filha muito jovem, uma professora, uma médica, um jovem que participou nas Jornadas Mundiais da Juventude, um representante da pastoral penitenciária, uma pessoa que recuperou de um período em que esteve bastante doente, alguém que se despojou de um cargo, um preso que terá a meditação lida por outra pessoa, uma família de luto, um artista… São intervenientes de diferentes quadrantes”, elenca a responsável pelos bens culturais da diocese viseense.

Fátima Eusébio, que recebe por esta altura os últimos testemunhos, garante que “há textos que vão obrigar a refletir”. “São profundamente tocantes. É bom que quem vá à via-sacra ouça e sinta estas palavras”, apela. “São pessoas registos de fé muito diferenciados. Procurámos essa diversidade: mostrar como pessoas que estão a viver contextos muito diferentes olham para cada um destes quadros”, acrescenta. Entre as reflexões haverá tempo para ouvir a amentação das almas, por um grupo da Paróquia Campo de Madalena.

Jovens têm de sentir que são necessários, defende Fátima Eusébio
Os claustros da Catedral de Viseu são preenchidos por estes dias com quadros alusivos às estações da via-sacra. Quadros concebidos naquela paróquia da diocese viseense. O objetivo foi lembrar uma das artes que em várias paróquias de norte a sul do país se costumam cumprir pelo menos uma vez por ano: os tapetes de flores. “Considero que é uma tradição que é importante ser preservada e valorizada”, defende. “Pensámos em levar essa arte para outro nível e executar num material mais durável os painéis com as estações da via-sacra. Começámos por utilizar a serradura colorida. Infelizmente alguns painéis ficaram danificados porque houve dias de muito vento. Por isso, tivemos de nos adaptar e de substituir grande parte da serradura colorida por sal colorido. Tem outra consistência e peso e tem-se, felizmente, mantido”, enfatiza Fátima Eusébio.

E assim foi. Num convívio intergeracional, juntaram-se jovens e menos jovens, várias horas por dia para desenhar, conceber e preencher cada um dos 14 quadros da via-sacra. Os painéis têm três metros de comprimento e dois de largura. “Houve uma equipa permanente de quatro ou cinco pessoas, mas mais jovens se juntaram. Chegámos a trabalhar até às seis da manhã… São trabalhos cansativos: estamos a trabalhar no chão e exigem minúcia. Mas o resultado final é muito gratificante”, realça Fátima Eusébio.
Católica assumida e uma mulher de fé, há muito que se mostra confiante no trabalho das novas gerações.

E 2023 foi, confessa, ano para guardar na memória. “A melhor prova de que os jovens, quando são cativados e envolvidos, estão lá, foi a Jornada Mundial da Juventude. Alguns dos jovens que lá estiveram até nem vão à Igreja com muita frequência, mas disseram um sim. Um sim muito presente. Não apenas os jovens que participaram nas Jornadas, mas também os que estiveram na preparação”, justifica.
Fátima Eusébio entende que “é importante envolver os jovens e mostrar-lhes que estas tradições lhes dizem respeito e que contamos com a participação deles”. “Claro que, hoje em dia, são solicitados para muitas coisas. Como também nós adultos o somos. Corremos o risco de nos dispersarmos e de não vivermos algumas coisas como gostaríamos. Foi bom ver a presença dos jovens. Perceber que tinham optado por fazer aqueles quadros connosco e ver que ficaram felizes com o resultado final”, esclarece.

O silêncio vai imperar este sábado no claustro da Sé de Viseu
Em jeito de convite, a diretora do Departamento dos Bens Culturais da Diocese, frisa que a noite deste sábado “vai convidar ao silêncio e à reflexão”. “Sejam pessoas católicas, ou não, é um momento que viverá de uma luz que durante esta noite vai emergindo”, vinca. Silêncio que, entende Fátima Eusébio, nem sempre é encontrado nos dias que correm. “Muitas vezes não nos permitimos ao silêncio. Parece já não termos tempo para libertar a nossa mente. Esquecemo-nos de estarmos connosco mesmos. E a Quaresma convida-nos muito a refletir sobre a nossa vivência e como nós podemos ultrapassar o que é menos bom e tornarmo-nos pessoas melhores. A acolher e a amar os outros. É uma linguagem universal”, explica.

A próxima semana, conhecida na Igreja Católica, por “semana santa” ou “semana maior” vai terminar no domingo de Páscoa, 31 de março. “Essa data faz-me sentir saudades. Lembro os tempos de criança, na aldeia dos meus pais. A visita pascal era uma festa. Era a alegria. Páscoa também é família. É o receber. Quando estamos com amor, estamos com Cristo. É a verdadeira expressão do amor”, esclarece. E sobre tradições das quais não prescinde, Fátima Eusébio é perentória: o bolo de azeite. “A minha avó amassava nas masseiras de madeira. A minha mãe mantém prática de fazer. Gosto imenso de um bolo de azeite, sem ser doce. E de umas boas cavacas”, detalha.