Carlos Eduardo

20 de 04 de 2024, 11:05

Diário

''Nós tínhamos noção de que o regime estava apodrecido, mas um capitão perguntava: quem é que vai tratar da criança que nos vai cair nos braços?''

Movia-os o fim do analfabetismo, uma vida melhor para eles, para as famílias e, sobretudo, para as mulheres portuguesas. E o adeus à guerra colonial. Um mundo mais justo e a liberdade eram valores que perseguiam. 50 anos volvidos, que país é Portugal? O capitão de Abril Ferreira do Amaral não tem dúvidas: há dificuldades, mas hoje vive-se melhor e com liberdade. “Uma vida menos orientada”, palavras do capitão. Ferreira do Amaral ficou em Viseu, no RI14, na noite mais decisiva da história contemporânea portuguesa. Viu os camaradas partir para Lisboa. “Estive sempre confiante”, assume, quando é questionado sobre se acreditava no sucesso do golpe militar. Nesta entrevista, descreve a operação e lembra uma avaria mecânica em Santa Comba Dão, terra natal do líder maior do Estado Novo. Numa conversa cheia de memórias, confessa detalhes da preparação do derrube do regime e garante que os heróis da Revolução de Abril foram as mulheres

capitão de abril ferreira amaral

Fotógrafo: Jornal do Centro

Em 1974, que esperança, que sonhos havia, para si, para os seus amigos, família… para Portugal?
Eu sonhava por uma vida melhor. Eu estava a viver em Viseu em 1974. A vida na cidade era muito diferente do que viver na aldeia, eu que sou um rural genuíno. Quase todos éramos casados. Eu tinha casado há um ano e tinha um filho de um ano. Queria que ele tivesse melhor do que eu tive na vida.

Para um jovem que o esteja a ler, como é que era Portugal, que Viseu havia, antes de abril?
Podia enumerar várias vertentes… Na educação, por exemplo, eu fui o único de 31 alunos – 25 rapazes e 6 raparigas – a continuar a estudar. Os outros foram ocupar-se da agricultura. Havia sapatos de pano a ocupar muita gente. A vida era uma rotina desajustada. Procurava-se sobreviver. Era uma vida sem nenhuma ambição. Havia quem tivesse sonhos – como no meu caso, mas os sonhos eram limitados ao dia a dia. E as mulheres eram discriminadas a toda a hora. Os pais nem as deixavam ir à escola. As mulheres estavam destinadas a fazer a lida da casa, a tratar dos velhos porque não havia apoio social nenhum e a ter filhos. Para estas três coisas não era preciso saber ler, nem escrever, nem contar. Portanto, não iam à escola. O analfabetismo grassava por todo o país: não só nas aldeias, nas cidades também.

Perante tudo isso que disse, e tendo vivido anos de sombra, como é que responde ao saudosismo que volta e meia ouvimos?
Eu não sei se devemos valorizar isso. Tenho dúvidas. Mesmo quem diz isso, desconhece o enquadramento social que havia na altura. O quadro social era terrível. Os funcionários públicos não recebiam nas férias. Havia pessoas que não gozavam férias para não perder dinheiro, mas os professores eram obrigados a gozá-las. Perdiam dinheiro nas férias. Segurança social, apoios, subsídios, reformas… Não havia. Eu não concordo com as pessoas que dizem que antigamente é que havia valores e que hoje não. Penso que a juventude é relativamente igual em todas as épocas. Também fiz as minhas asneiras, mas, no fundo, são iguais ao que eu era na altura, com a idade deles.

O que vos motivou a avançar para a operação do fim do regime?
O período descolonizador começou a seguir à Segunda Guerra Mundial na Europa. Continuo a pensar o que pensava há cinquenta anos. Se não houvesse Guerra Colonial, não havia 25 de Abril. Entre 1970 e 1973 emigraram mais de 300 mil portugueses, homens. As mulheres, que não tinham direitos, iam lá ter.

Motivos não faltavam…
Eu entrei na Academia Militar no dia 1 de outubro de 1963. E um ano depois entrou outra vaga. Tínhamos uma vida de amizade e isso aproximou- -nos. Os de 63 fomos os primeiros a ir para África como alferes. Eu comandei um pelotão em Moçambique. O capitão era a peça dominante da guerra de África e não era feito de um dia para outro. O poder entendeu que, para dar algum descanso aos capitães, os antigos alferes ascendessem a capitães. Fez uns cursos rápidos e publicou uma legislação que afetava o pessoal e beneficiava alguns para irem para África comandar as companhias. Os capitães conversavam abertamente sobre tudo. Não havia telemóvel, não havia nada. Confiávamos muito uns nos outros e sabíamos que aquilo era algo coeso. Não precisávamos de papéis, nada. Bastava uma dica de um lado para o outro para tudo correr normalmente. A legislação foi o que nos levou a Alcáçovas em 1973. Juntámo-nos cerca de 150. Já era um número extremamente elevado. Foi feito um papel, uma reivindicação, que foi levado ao ministro da Defesa.

Como foi a viagem de Viseu para Alcáçovas?
Quando partimos de Viseu para Alcáçovas, nós, os quatro capitães de Viseu, fomos sempre conversando. E durante o percurso fomos dizendo que o regime estava podre e que tínhamos de tomar uma atitude. Um camarada, que já faleceu, o capitão Gertrudes da Silva ia ao meu lado no carro. Depois da conversa, disse ele assim: “e quem é que vai tratar da criança que nos vai cair nos braços?”. Nós tínhamos a noção exata de que o regime estava apodrecido, mas que a situação posterior era difícil de agarrar. Depois, continuámos a ter as nossas conversas, nas unidades. E em dezembro de 73, em Óbidos, voltámos a reunir. Aí já foi assumido que o Movimento das Forças Armadas tinha de ter uma estrutura. Houve eleições e começou a haver um levantamento nas unidades sobre os meios que havia. Com as forças de segurança que havia, o regime só podia cair se houvesse uma força superior a anular essas forças de segurança. E quem tinha essa força eram os militares. Os meios não eram muitos em Portugal porque estavam dispersos por Angola, Guiné e Moçambique, mas, mesmo assim, com os meios possíveis, conseguimos fazê-lo.

O Regimento de Infantaria 14 constituiu depois o Agrupamento November…
Sim, saíram de Viseu, no dia 25, às três e pouco da manhã. O meu 25 de Abril de 74 começou no dia 23, quando vieram camaradas nossos de Lisboa trazer a ordem de operações. Bateram-me à porta por volta da meia-noite de 23 para 24. Tinha-lhes acontecido uma desgraça. Rompeu-lhes a panela de escape, curiosamente em Santa Comba Dão. E vieram de Santa Comba até Viseu com um barulho terrível. Chegaram, bateram-me à porta e vinha o capitão com um jornal da época debaixo do braço. Era a senha que o identificava. E disse-me ou nos emprestas o carro ou vais connosco a Lamego para avisar os militares das movimentações. E eu preferi ir a Lamego porque eles precisavam da senha e contra-senha para entrar no quartel. Eu sabia como aquilo estava a funcionar. Então admitimos que o soldado que estava de serviço era conhecido. E se assim fosse, facilitava a entrada. E foi assim. Estive na conversa com o pessoal de Lamego, voltámos e tomámos o pequeno almoço em minha casa. E eu andei com a ordem de operações todo o dia por baixo da camisola interior.

Não foram momentos fáceis...
Tinha havido um incêndio no parque das viaturas de Viseu e só tinham ficado de fora duas viaturas e a ambulância. O comandante de então ficou muito afetado com aquilo e faleceu no dia 30 ou 31 de março de 74. E no dia 24 de abril tomou posse o comandante que o ia substituir e comandou o regimento durante duas ou três horas. A lealdade é um dos valores dos militares. Aos capitães dizíamos tudo. Aos oficiais superiores, majores e tenentes coronéis, dizíamos o que podíamos. O coronel que tomou posse no dia 24 chegou ao quartel, alertado por Coimbra, e disse que queria entrar. Eu e o meu camarada e amigo Aprígio Ramalho dissemos-lhe o que se estava a passar. Que a companhia já tinha saído para Lisboa e que, se quisesse aderir, entrava, se não que voltasse para casa. Lá nos disse umas coisas e voltou para casa. O Agrupamento November iniciou a marcha para Lisboa em Viseu, mas depois foi juntando forças na Figueira da Foz e em Aveiro. Levavam uma ambulância carregada de munições. E foi assim que se fez a revolução. Foram para Lisboa os capitães Gertrudes da Silva e Arnaldo Costeira. Infelizmente já faleceram os dois. O posto de comando era o carro particular do capitão Gertrudes da Silva, com as duas viaturas e ambulância. Eu fiquei em Viseu. Quando cheguei ao quartel, à meia noite e meia, mandei levantar o pessoal todo, formei-os no átrio da companhia e disse-lhes rigorosamente o que se estava a passar. Disse-lhe que quem não quisesse aderir, que voltasse para a cama e os que não quisessem que viessem comigo. Não houve um único que não quisesse ir para Lisboa. Como compreende era impossível. Não era possível pôr 300 pessoas em duas viaturas e numa ambulância.

Ficou em Viseu. Como sentiu tudo à distância?
Evidente que tive pena de não ter ido. Mas também era preciso que alguém ficasse no quartel [de Viseu] a garantir a segurança. Lembro-me de nessa manhã, às seis, ter entrado o padeiro. Nem se apercebeu de nada. Os automobilistas começaram a apitar na estrada conforme iam ouvindo os comunicados do Movimento das Forças Armadas.

Quando viu os seus camaradas ir para Lisboa estava confiante de que o fim do regime ia avante?
Não estive só confiante nessa altura. Estive sempre confiante. Mesmo a caminho de Alcáçovas, eu disse que nós íamos estar até determinado momento do lado mau. E que, quando a revolta tivesse êxito, passávamos a estar no outro lado. Desde a ida para Alcáçovas que sempre confiei. Ainda houve tiros no dia 25 na sede da PIDE. Eu conhecia mais ou menos a forma de ser deles. Sempre achei que não iam ter comando ou liderança.

50 anos volvidos, Portugal já percebeu o ato heróico? Já vos foi feita justiça ou ainda há muito por escrever?
Ainda não há muitos anos, uma amiga, no 25 de Abril, mandou- -me uma mensagem a dizer que nós éramos uns heróis. Eu respondi-lhe que não há heróis. Se houve pessoas que tiveram atos heróicos foram as nossas mulheres. Todos éramos casados há pouco tempo e tínhamos filhos pequenos. E elas tiveram um comportamento de heroínas.

Hoje cumpriu-se tudo o que vocês sonharam? É o Portugal que sonharam?
Fez-se a descolonização e é preciso tratá-la com honestidade. Fez-se nuns meses, mas assentava numa colonização de cinco séculos. Não correu bem, mas também podemos dizer que a colonização também tem coisas que não nos envaidecem.

Já fizemos as pazes com as colónias? A história portuguesa escreve bem sobre esses anos de colonização?
Ainda há pessoas que têm resistência em relação ao tema, mas eu julgo que está tudo mais do que ultrapassado. Os nossos colonos tinham uma vida em África completamente diferente da que tinham em Portugal. A sensação de liberdade era real em África. Eles, em Portugal, nunca fariam o que faziam em África. A integração que os retornados tiveram em Portugal não é comparável à dos franceses – argelinos em França. Aqui ficaram integrados de uma forma natural e pacífica.

E o D de democratizar?
Eu já tenho dito que a democracia é uma coisa sem remissão. Há pouco tempo estive a ler Camões. E nos Lusíadas, na passagem do velho do Resto, o Camões escreve “—”Ó glória de mandar! Ó vã cobiça/ Desta vaidade, a quem chamamos Fama!’ e vai por aí abaixo. E diz assim: ‘Também os novos e fraudulentos gostos que se atiçam’. Portanto, condena os novos e fraudulentos gostos que se atiçam. Não sei se estamos nessa situação. Mas também posso dizer que as mulheres podem repensar no que pode acontecer. Elas já atravessaram uma longa noite. Um negrume, um nevoeiro. E podem ser confrontadas com situações que não acredito que venham a acontecer, mas é uma possibilidade…

E falta o terceiro D…
O desenvolvimento. Nos 25 anos do 25 de Abril eu fiz uma intervenção na Assembleia Municipal e uma das coisas que disse foi que já tinham morrido uma série de participantes do 25 de Abril. Tinha pena que tivessem partido sem terem visto a concretização do que sonharam. Mas eu penso que, 25 anos depois, as coisas são completamente diferentes. O poder local é uma resultante plena do 25 de Abril. [Os presidentes] eram nomeados pelo poder central, eram um braço. Para não ir mais longe. Agora, não. São autónomos, têm possibilidade de fazer orçamentos e obras que antes não podiam fazer. O quadro hoje é diferente. Enquanto há 50 anos víamos por aí os Estados Unidos a ajudar a Europa, hoje Portugal integra a União Europeia que, bem ou mal, possibilitou que as nossas capacidades tivessem sido exponenciadas. Isso resulta também nas próprias pessoas que, hoje, têm uma vida menos orientada. Têm hoje mais liberdade. A questão da União Europeia é importante.

O que falta cumprir?
Dentro dos três D, é possível que haja mais vertentes que não estejam muito consideradas. Mas, se reduzirmos isto, à vertente da educação, segurança social, saúde… Eu julgo que a sociedade portuguesa tem hoje a perceção de que as coisas não estão bem na saúde, na educação, etc. Mas é uma perceção. Comparando com aquilo que era há 50 anos não tem nada a ver. Os hospitais que havia há 50 anos – e não havia muitos distritais – tinham carências a toda a hora. Basta dizer que os prestadores do serviço de saúde não tinham a qualificação que têm hoje. Eram as irmãs de caridade, as freiras, que trabalhavam nos hospitais e eram elas quem mandava naquilo. Lembro-me do Hospital de Viseu com maternidade. Lembro-me de lá ter ido e aquilo era uma coisa que… só visto. É inimaginável, para quem é jovem pensar o que se passava lá. Era degradante.

Portanto, hoje há problemas, mas se olharmos para o que acontecia há 50 anos não tem comparação…
Não tem.

Como é que tem visto a evolução das forças extremistas? É uma falha da democracia?
Penso que não, que não é falha da democracia. Em conversa com amigos vou dizendo que todos somos responsáveis. Mas a comunicação social não é menos, porque vai orientando a perceção das coisas. Eu não acredito na perceção das coisas, mas que elas existem, existem e as pessoas são arrastadas para a perceção de que existem. Os media hoje são muito responsáveis por muito do que se diz e passa na sociedade portuguesa.

Mas o extremismo, o fenómeno extremista, assusta-o?
Assustar não digo, mas causa-me muita preocupação. Ainda não vamos além de nos preocuparmos com as coisas. Embora às vezes as coisas podem ser agravadas, mas apenas em casos pontuais.

Em quê?
O género feminino é o grande beneficiário do 25 de Abril. É preciso ter em conta que as mulheres são mais de metade da população portuguesa. Portanto, era bom que todos os governos pudessem tomar medidas no sentido de englobar toda a população. Nunca fui apologista das classes.

Faz sentido equiparar o 25 de Abril ao 25 de Novembro?
Tem surgido nos últimos tempos uma corrente a defender tal ideia. Acho que é uma corrente que não tem força. O 25 de Novembro tem também importância, mas não a que lhe querem atribuir. Não tem, não tem. De todo. Vivi o 25 de Abril enquanto participante. Tal como o 25 de Novembro. O 25 de Novembro não teve a mesma importância do 25 de Abril. Não há comparação possível. Eu não entro nessa discussão.