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28 de 04 de 2024, 10:00

Lifestyle

A caminho da História, da Arte e da Espiritualidade

A sul do distrito de Viseu, há locais que merecem uma visita mais atenta. Nesta edição, deixamos dois exemplos. Um em Mortágua e outro em Santa Comba Dão. São Aldeias de Portugal. As propostas passam por momentos meditativos, pelo conhecimento, sem esquecer a gastronomia e as tradições

Marmeleira Mortágua

Fotógrafo: Aldeias de Portugal

Marmeleira
Mortágua


Referenciada pelo menos desde 973, a aldeia da Marmeleira, no município de Mortágua, é hoje habitada por cerca de 480 pessoas que, tal como sobreviveram às invasões francesas, também resistem a um signifi cativo despovoamento e mantêm ativa a localidade do distrito de Viseu envolvida pela inspiradora paisagem da Mata do Bussaco. O casario antigo da Marmeleira, muitas vezes abandonado, convive com habitações mais modernas ao gosto dos poucos jovens que se fi xaram na povoação, onde o principal ponto de atração turística é o Núcleo Museológico da Irmânia “Raízes e Memórias”. Esse espaço acolhe uma mostra de artes e ofícios, e, além de informação sobre a fl ora autóctone e sobre fi guras da terra ligadas aos ideais republicanos e à Maçonaria, dá a conhecer outros aspetos da história da aldeia, recriando espaços concretos como uma casa de lavradores do século XIX e dois estabelecimentos comerciais emblemáticos das primeiras décadas de 1900, a Loja Progresso e a Alfaiataria Lysiana. “Lysina” e “Irmânia” são, aliás, nomes que por vezes se confundem como sinónimos de “Marmeleira”, seja por terem origem em designações medievais da região ou por estarem ligados a momentos históricos determinantes, como a criação da Escola Livre da Irmânia, em 1908. A memória desse estabelecimento de ensino é particularmente acarinhada na aldeia porque, juntamente com a Biblioteca Popular (também denominada Centro Democrático de Educação Popular), esse espaço educativo constituiu um marco decisivo na disseminação regional da literacia e na promoção do espírito de liberdade e cidadania. O esforço pela implementação desses conceitos ganha ainda maior relevância se interpretado no contexto histórico da própria região, o que justificará uma viagem de poucos quilómetros até à sede do município para conhecer o Centro de Interpretação “Mortágua na Batalha do Bussaco”. Evocando aquela que foi a maior batalha napoleónica em Portugal, esse espaço cultural homenageia os homens e mulheres que enfrentaram as tropas invasoras no confl ito de 1810 e recorda como as gentes locais suportaram com tenacidade as privações impostas pela situação. De regresso à Marmeleira, há ainda para conhecer as ruínas do Santuário de Nossa Senhora do Carmo, construído por volta de 1600 junto a uma ribeira, num sinal do apreço que a população local desde há séculos mantém pelos seus recursos de água. Esse templo destinava-se a acolher um convento de Carmelitas Descalças, mas o projeto não avançou porque os Condes de Odemira, donatários da então Villa Irmânia e senhores da Marmeleira, não aceitaram a proposta do prior ao recomendar que as rendas provenientes da igreja fossem encaminhadas para a gestão da residência religiosa. Outros templos em destaque nesta “Aldeia de Portugal” são a Igreja da Marmeleira, datada de 1797 e decorada no exterior com um enorme relógio de pedra doado à paróquia pelos habitantes da povoação, e o Santuário da Nossa Senhora da Ribeira, templo de estilo rococó construído em 1645 e reedifi cado em 1747. À semelhança da Capela de São João da Cercosa, esse santuário está envolvido por um parque de merendas, mas distingue-se por terum moinho de rodízio ainda em funcionamento. Os adeptos de turismo ativo têm igualmente boas opções de percursos pedestres na região, como é o caso da GR 49 Grande Rota do Bussaco, do Caminho Natural da Espiritualidade e dos oito roteiros cicláveis defi nidos pelo Cent ro de BTT de Mortágua. Depois desse esforço físico, é então tempo de compensação calórica e as incontornáveis iguarias da região são duas: a lampantana, confecionada com carne de ovelha assada em caçoila de barro no forno a lenha e servida com batata fardada e grelos, e o chamado “bolo de cornos”, que, também conhecido como “bolo de 24 horas” ou “bolo doce da Páscoa”, é amassado em alguidar de barro vidrado e untado com azeite ou manteiga enquanto ainda está quente.

Couto do Mosteiro
Santa Comba Dão


Terra de herança templária, Couto do Mosteiro diz muito da sua origem no próprio nome. Nele se combina a referência ao mosteiro que em 1150 aí foi construído pela Ordem dos Templários e a menção ao couto que D. Afonso III instituiu em 1255 para confiar os seus férteis terrenos aos bispos de Coimbra. Menos de três séculos depois, o povoado era elevado à categoria de vila e, por foral de D. Manuel em 1514, tornava-se sede de um concelho homónimo, que só bem mais tarde, em 1836, seria extinto para dar lugar ao atual município de Santa Comba Dão, no distrito de Viseu. Couto do Mosteiro manteve, entretanto, a sua reputação fidalga. Isso percebe-se à primeira vista perante património de tão nobre traça como o edifício da antiga câmara municipal, que também já funcionou como prisão e escola primária; o Solar dos Costas, casa nobre rural construída no século XVIII; e a Igreja Matriz, que, após uma reconstrução em 1661, continua no preciso local que em tempos foi a casa dos monges templários. Na paisagem arquitetónica de Couto do Mosteiro destaca-se ainda o pelourinho manuelino, que assinala o estatuto conferido à terra pelo foral real do século XIII, e a Casa dos Arcos, que, edificada no século XVII, é conhecida por em 1693 ter albergado D. Catarina de Bragança, viúva de Carlos II de Inglaterra, no seu regresso a Portugal. Mais tarde, em 1824, o proprietário desse solar foi agraciado com o título de Barão de Santa Comba, mas, com ou sem cartão-de-visita nobiliárquico, outros solares acarinhados em Couto do Mosteiro são o dos Festas, o dos Varela Dias e o do Outeiro, que tem capela própria. Atualmente com cerca de 90 habitantes, esta “Aldeia de Portugal” ainda dedica parte da sua rotina diária à agricultura, no que a produção vinícola ocupa lugar especial, e participa igualmente na vida associativa local, muito centrada em atividades relacionadas com a paróquia. Momentos em que o espírito comunitário se vive com particular entusiasmo são, nesse contexto, as festividades em honra de São Brás, de capela bem aprumada por esses dias, e até as Festas de Santa Cruz, no povoado vizinho, onde “a cruz-mãe do Couto do Mosteiro é beijada pela cruz-filha do Vimieiro”. No primeiro domingo de maio, a população de uma localidade vai, por isso, ao povoado do outro do lado do Dão, em cumprimento de um ritual antigo com origem nas bênçãos pagãs dos campos de cultivo. Para momentos mais meditativos, Couto do Mosteiro também tem muitas opções: o pequeno passadiço de madeira junto à Ribeira das Hortas, entre a antiga Câmara e a Rua dos Aldrógãos; os miradouros da Colmeosa e do Outeirinho; a ponte sobre o rio Criz; o troço local da albufeira da Barragem da Aguieira; e a zona balnear da Senhora da Ribeira, onde se cruzam o Criz, o Dão e o Mondego. O percurso da Ecopista do Dão é outra alternativa de lazer, com os seus 49 quilómetros de trajeto natural sobre a antiga linha ferroviária de Viseu a Santa Comba Dão, desativada em 1988 e transformada em percurso ciclável em 2011. Chegada então a hora de retemperar energias, a gastronomia local prima por pratos como caldeirada de borrego, carolos com barriga de porco e as típicas broínhas de Santa Comba. Mas produtos típicos do Couto do Mosteiro também são o vinho, o azeite, a castanha, a maçã e os cogumelos. Muito desses hortícolas já existiam pela terra no tempo das invasões francesas. E, a esse propósito, conta a história que, a 19 de setembro de 1810, quando tropas napoleónicas andavam por Couto do Mosteiro, os portugueses lhes fizeram uma emboscada na estrada para Vale da Mó, resultando da peleja a morte de vários franceses. A vingança veio no dia seguinte. Os homens de Bonaparte capturam alguns portugueses no lugar da Portela e logo os enforcaram no monte que hoje é conhecido como o Cabeço da Forca. Também neste caso, a toponímia diz muito da história do lugar – e preserva memórias que há que conhecer e respeitar.