Autor

David Duarte

16 de 09 de 2023, 08:14

Colunistas

16 de Maio de 1985 (continuação VI)

Ela sorriu e agradeceu-me, dizendo que tinha sido graças a mim, à minha paciência para partilhar nas tardes tórridas do Alentejo um livrinho brasileiro

No meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra.

Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra

Bati-lhe palmas, muito brevemente. Depois, enlacei-a num abraço. Ela sorria. Abandonámos o lugar e continuámos a andar. Então, ela revelou a pedrada que foi a leitura deste poeta, pedrada cognitiva, psicológica, emocional. E sorriu do início do discurso. Mas recorda que ao deparar-se com este poema ficara boquiaberta, a imaginar o gozo de Carlos Drummond de Andrade ao escrevê-lo e ao pensar no seu reflexo no leitor. Porque, disse-me, parece não ter sentido nenhum, só lentamente percebemos que pode significar as cenas que temos que enfrentar, constantemente a interferirem connosco, desde coisas importantes a insignificâncias, É assim com a vida, as pedras do caminho como obstáculo à felicidade. E, virando-se diretamente para mim, explicou como, dando-nos bem, sentindo o que sentimos um pelo outro, como o entendimento acontece entre nós sem esforço, as nossas brincadeiras partilhadas, o sexo perfeito, e, no entanto, tem uma pedra no caminho, no nosso caminho. Não há dúvida, o poema é demais, no seu entender, assim devia ser a poesia, simples, obscura quanto baste, mas precisa na intenção, exata como a matemática. Foi a minha vez de parar, a observá-la. Estava surpreendidíssimo. Era esta a jovem do castelo de Mourão que um dia dissera que não gostava de ler!? Ela sorriu e agradeceu-me, dizendo que tinha sido graças a mim, à minha paciência para partilhar nas tardes tórridas do Alentejo um livrinho brasileiro.