Paulo Lopes

21 de 07 de 2021, 18:49

Cultura

Um fémur curado ou a selva

Pausa. Último episódio da temporada.

Podcast Boca a Boca




E sem querer, lá estamos nós a chegar, de novo, ao fim de mais uma temporada.
Mais uma semana e agosto entra-nos pela vida adentro, passará provavelmente a correr, e em setembro cá estaremos a reabrir portas, como se tudo pudesse sempre recomeçar mais uma vez.
E o estranho é que pode.
E o mais estranho ainda é que isso é tendencialmente bom.
Agarramo-nos tanto à incapacidade de previsão como forma de estar nos dias e esquecemo-nos de que o quotidiano é circular.
Vivemos por ciclos, e necessitamos tanto de pousio como de aceleração.
Se somos um bicho que pensa e que progride, não é porque somos capazes de inventar a agulha, ou a roda, ou até mesmo construir asas para voar, mas porque temos a capacidade de parar, de esperar pelos outros que não são tão rápidos nem tão ágeis como nós. É porque acompanhamos aqueles que são dependentes de nós, aqueles que sem nós ficam para trás, não crescem, não chegam mais longe, que somos um bicho que progride e que pensa.
Há poucos dias, em conversa com a Teresa Martins Marques, presidente do Pen Clube Português, associação de poetas, ensaístas e narradores, ela dizia-me: já pensou que chegámos aqui porque somos seres sensíveis e não porque somos fortes? Já pensou que um animal selvagem que parta um fémur não sobrevive o tempo suficiente para o curar porque é deixado para trás e não chega a recuperar? Sem outro animal que o ajude, não poderá fugir do perigo, não poderá caçar e saciar a fome, será presa fácil para os seus predadores. Já pensou que o primeiro sinal de civilização é um fémur partido curado? Porque para curar um fémur é preciso ter alguém ao nosso lado que cuide de nós, que nos dê tempo para ficarmos quietos até o osso se voltar a colar.
“Ajudar alguém a passar por uma dificuldade (durante o tempo que for preciso) é o ponto de partida para a civilização”, diz também a antropóloga Margaret Mead. Se tivéssemos todos seguido a lei da selva, o salve-se quem puder, já há muito que não teríamos futuro. Preocupados apenas connosco, teríamos deixado para trás os mais novos.
A civilização não sobreviveu à conta dos princípios que hoje teima em promover e em seguir, enquanto o coração lhe pede e faz o contrário - pensei eu. A velocidade, a competição, a ansiedade, o controlo, a agressão, a maldita vontade de saber já como se chega ao fim, para que se chega ao fim, qual é o fim...
Volto a pensar no querido mês de agosto e penso que é um mês de cura. Como um animal-tempo gigante que nos desacelera.
Não deve haver ser humano neste planeta que, no decorrer deste longo inverno de 2020 e 2021 não tenha já partido um ou dois fémures pelo caminho.
Não deve haver ser humano que, mesmo todo partido e sem se permitir parar, não tenha tentado, em vão e já sem pernas, curar o próximo com as ferramentas que já não tem à mão.
Não deve haver ser humano neste planeta que não necessite de tempo para colar os ossos, enquanto o mar lambe as feridas que depois devem secar ao sol.
Não deve haver ser humano que não caia, ao fim da sua temporada, e que, depois de parar, não se levante outra vez, como se nada fosse, pronto para recomeçar tudo outra vez.
É o que contamos fazer neste próximo mês.
Vamos para casa sarar os fémures, para depois regressarmos, de corpo inteiro, e em muito boa forma, para as próximas caminhadas. Até já!

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Patrícia Portela, diretora artística do Teatro Viriato