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09 de 03 de 2024, 17:05

Diário

Tradutores de língua gestual na Assembleia Municipal: quando um gesto pode incluir ou afastar um surdo da política

A Assembleia Municipal Infantil realizada em fevereiro contou com duas tradutoras de língua gestual e cinco crianças surdas. Iniciativas como esta podem ser o primeiro passo numa assembleia municipal mais justa e que chegue a todos

lingua gestual

Ser-se deputado por um dia é uma experiência que pode fazer uma criança sentir-se mais próxima da sua comunidade, especialmente se essa criança sofrer de algum tipo de deficiência. Em Viseu, na Assembleia Municipal Infantil, cinco crianças surdas puderam acompanhar – e participar – na 17ª edição da sessão plenária, experienciando parte daquilo que é ser deputado por um dia.

Para que estes jovens pudessem saber aquilo que era dito durante a sessão e, por sua vez, mostrar as suas próprias propostas, duas tradutoras de língua gestual acompanharam constantemente estes jovens. Os cinco “deputados por um dia” faziam parte do agrupamento de escolas Grão Vasco. Além deste agrupamento, participaram os agrupamentos de escolas Viso, Norte, Infante D. Henrique e Mundão, assim como os colégios da Via Sacra e da Imaculada Conceição. A iniciativa teve como público-alvo crianças do quarto ano do ensino básico.

Depois de serem empossados pelo presidente da Assembleia Municipal, os novos deputados apresentaram em grupos as suas propostas e moções, acompanhados de um vídeo a ilustrar os temas abordados. O mote da 17ª edição da Assembleia Municipal Infantil foi “1974-2024 – 50 Anos em Liberdade”.

“Participaram os nossos alunos, da escola do Bairro Municipal, que pertence ao agrupamento de escolas Grão Vasco. Uma parte dos alunos que se candidataram são alunos surdos e eu e a minha colega, como estamos a acompanhar estes alunos na escola, fomos traduzir, para promover o acesso a estas crianças”, começou por explicar Alexandra Santiago, uma das tradutoras de língua gestual que trabalha com os alunos do agrupamento.

Além destas cinco crianças do quarto ano, Alexandra Santiago e a colega trabalham com outros jovens, que vão desde o primeiro ao nono ano. “Não cobrimos tudo porque é impossível, mas tentamos dar prioridade aos mais urgentes, ou seja, às aulas mais teóricas”, explicou. Normalmente, as duas tradutoras são requisitadas para as aulas de português, matemática, físico-química ou ciências naturais, com prioridade para as aulas de português.

A ideia de integrar os alunos com deficiências auditivas na Assembleia Municipal Infantil partiu do professor titular do agrupamento, que propôs aos alunos e às tradutoras a participação na iniciativa. “Claro que nós dissemos que por nós tudo bem, desde que os alunos quisessem. Eles acabaram por aceitar e tudo isto tornou-se numa experiência nova para eles. É importante para estas crianças a participação noutros projetos, neste caso na Assembleia Municipal”, afirmou Alexandra Santiago.

De modo a facilitar o processo de tradução, mas sem que se marginalizassem estas crianças, foi criado um grupo de 11 jovens, constituído por seis crianças ouvintes e as cinco crianças surdas que participaram na Assembleia Municipal Infantil. Além da oportunidade de se sentaram na primeira fila da Assembleia Municipal, no Solar dos Peixotos, os cinco elementos tiveram a possibilidade de apresentar as suas propostas no púlpito. “O que era da parte oral nós traduzíamos da língua gestual. Quando são os nossos alunos a fazerem a língua gestual, nós traduzimos para o oral. Eles estavam no púlpito e nós as duas falávamos para a assembleia. Traduzíamos as suas propostas, as dúvidas em língua gestual e traduzíamos também para voz”, esclareceu Alexandra Santiago.

Para a tradutora, a participação destas crianças surdas na Assembleia Municipal Infantil foi uma “luzinha em como toda a gente pode participar e que é fundamental abrir os horizontes, não só para as crianças ditas ‘normais’, mas para crianças, neste caso surdas, que também são capazes como as outras”. A única diferença, neste caso, é a língua com que falam estes cinco jovens.

A presença das duas tradutoras na Assembleia Municipal Infantil em vez de apenas uma é explicada por dois fatores. O primeiro é que qualquer atividade que envolva tradução e cuja duração ultrapasse uma hora necessita de ter obrigatoriamente dois tradutores. “O facto de estarmos a traduzir no momento numa questão de segundos é um grande esforço. Neste tipo de eventos [com mais de uma hora] é sempre muito importante haver uma outra pessoa, para que as duas se possam revezar. Vamos trocando para que o nosso cérebro consiga descansar”, contou a tradutora.

O segundo motivo que levou as duas tradutoras até à Assembleia Municipal Infantil tem que ver com o tipo de evento e não apenas com a sua duração. “Uma das situações que aconteceu foi estarem a projetar e não se conseguir ouvir tão bem. Estar virada depois para trás e tentar ler é complicado, porque estamos a tentar ouvir, estamos a tentar ler e tudo ao mesmo tempo torna-se complicado”, esclareceu Alexandra Santiago. “Se houver uma pessoa a fazer ‘espelho’, ela consegue dar-nos algumas dicas que não estamos a conseguir perceber. Há algo que se pode estar a passar por trás de nós, e a colega da frente consegue ver e dizer que “estão a falar sobre isto porque’, e dá-nos umas luzes do que está a acontecer atrás.”

A língua gestual nas transmissões da Assembleia Municipal
Existem muitas câmaras municipais que realizam transmissões das suas assembleias municipais e que contam com tradutores para que as pessoas com deficiência auditiva possam saber os tópicos discutidos em plenário. É o caso, contou Alexandra, do caso de Aveiro, Ílhavo, Lisboa, Porto ou Guarda. Para a tradutora, faz todo o sentido que Viseu, começando a transmitir as sessões da Assembleia Municipal, inclua um tradutor de língua gestual. “Em Viseu existe um número significativo de população surda e muitos deles não sabem o que é que se passa na cidade. Este ano somos cidade do desporto, que é ainda mais importante. Faz todo o sentido esse investimento para que as pessoas surdas possam saber o que é que se vai passando, que tipo de decisões, e estas decisões são feitas na Assembleia Municipal”, contou Alexandra.

Já em relação à possibilidade de se colocar legendas nas gravações, esta não é, para Alexandra Santiago, a solução ideal. Isto porque, além de muitas vezes as legendas automáticas não colocarem as palavras corretas, “há muitas pessoas surdas que têm o quarto ano de escolaridade e há muito vocabulário que não sabem o que significa na escrita, mas que sabem na língua gestual”.

Em qualquer área que se queira abordar em iniciativas como palestras ou conferências, existem palavras e expressões que são próprias de uma determinada temática, o que torna mais difícil o trabalho de tradução para língua gestual. “Nas assembleias não costuma ser, mas quando vamos a palestras ou para outro tipo de trabalhos pedimos sempre um resumo do que se vai falar. Assim se houver alguma palavra que não saibamos, podemos perguntar a outros colegas. Além disso, temos de questionar sempre na comunidade surda se existe gesto ou não”, explicou a tradutora.

Alexandra Santiago já traduziu sessões plenárias de outras assembleias municipais e assumiu não ter necessitado de grande preparação. “Se formos prestando atenção ao que vai acontecendo e se for na nossa cidade, é mais fácil traduzirmos do que se formos para um município em que não conhecemos o território e as políticas”, assumiu a tradutora. “Aí se calhar perguntamos a colegas o que e vai passando ou questionamos mesmo à própria câmara municipal os pontos sobre os quais se vai falar”, contou. O mais difícil, confidenciou, é a área da Saúde, uma vez que tem muitos termos específicos e científicos.

No caso de existir alguma palavra que não tem um gesto próprio, os tradutores tentam procurar primeiro outra palavra com significado semelhante que possa ser adaptada. Caso não exista nenhum sinónimo, a palavra em questão é soletrada através da língua gestual.