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18 de 02 de 2024, 12:11

Cultura

“Em cima da mulher não está o mundo, mas estão muitos mundos na verdade”. Peça “Mãe” estreia no Teatro Viriato

O espetáculo foi criado por três atrizes e recém-mães que vão dar a conhecer algumas das experiências de se ser mãe, inspiradas em 50 entrevistas que atravessaram diferentes países e culturas

A mãe

Fotógrafo: Luis Belo

O que é ser mãe? A pergunta não tem uma só resposta. Contudo, no dia 23 de fevereiro, no Teatro Viriato, Ana Vargas, Joana Gomes Martins e Sofia Moura vão refletir, em conjunto com a plateia, sobre qual o papel de uma mãe e que tipo de amor liga uma mãe a um filho.
Para a dramaturgia do espetáculo “Mãe”, em cena às 21h00, foram entrevistadas 50 mulheres de diferentes países, idades e culturas. Além disso, foram ainda analisados vários textos e obras que se debruçam sobre o tema da maternagem – expressão distinta de maternidade. O resultado é uma peça de teatro criada e interpretada por três mães recentes que são ao mesmo tempo artistas, cujos dois mundos, pessoal e profissional, se cruzam constantemente. Filipinas, Reino Unido, Estados Unidos da América, Cabo Verde, São Tomé, Alemanha e Angola. As entrevistas percorreram vários países e culturas.
“O desejo de fazer este espetáculo já é antigo e prévio ao facto de ser mãe”, explicou Sofia Moura, atriz, dramaturga e mãe há 17 meses. “Vinha precisamente de questionar o amor pela mãe, da relação com a minha própria mãe. Quando fui mãe, a coisa tornou-se ainda mais urgente e tomou uma dimensão muito mais completa, porque não sou só filha, sou também mãe e, portanto, também entendo o lado dela”, disse ainda a dramaturga, que contou ainda com o apoio de Lígia Soares na dramaturgia.
Para Sofia Moura, o ser mãe é perceber que “se calar não é aquela idealização que se calhar nos fizeram acreditar”. “Há todo um outro lado que não é falado, que é esse tal invisível que acontece todos os dias há milhares de anos”. Uma das perguntas colocadas às entrevistadas, explicou Ana Vargas, mãe há dois anos e um mês, foi “o que é que é ser mãe”. O resultado, contou, foi uma multiplicidade de respostas em tudo diferentes umas das outras, uma vez que várias culturas e idades dão origem a diferentes interpretações do que é ser mãe. “Lembro-me de uma entrevistada que referia que nos anos 1960, com a emancipação feminina, começou a ser menos bem visto o amamentar e por causa disso esta pessoa em questão não foi amamentada pela mãe, algo bem diferente da realidade em Portugal”. Já em relação a São Tomé, Sofia Moura deu o exemplo de uma mãe entrevistada que ficou “muito surpreendida por não carregarmos os filhos naqueles panos às costas e por andarmos com os carrinhos de bebé”.
“Com este espetáculo, como com todos, nós não temos respostas, temos mais perguntas. Nós vamo-nos revelando nas nossas perguntas, na nossa forma de nos relacionarmos com o outro, que é a nossa forma artística, é sermos atrizes e mães, criadoras em todas as dimensões, a criar vida e a criar pessoas”, afirmou Ana Vargas.
Sofia Moura considera que este espetáculo faz falta não apenas na região de Viseu, onde o rural e o urbano, o conservador e o progressista se cruzam, mas faz, sim, falta “no geral”. “Nós entrevistámos mulheres de diferentes idades. Umas mais velhas que viveram mais o mundo rural, outras mais citadinas, umas mais novas, outras de outros países cm uma cultura completamente diferente da nossa”, continuou a contar a dramaturga e criadora de “Mãe”. “Interessava-nos também através da singularidade chegar a uma universalidade que, por um lado não existe porque somos todas diferentes, mas em que partilhamos todas a mesma condição, que neste caso nem é ser mãe.”
“Nós falámos com mulheres que não querem ser mães ou que não puderam ser mães, mas é ser mulher e esta relação com a maternidade”, disse Sofia.

Uma peça de mulheres feita por mulheres que carrega “uma energia de colo”
O processo de entrevistas que deu origem à peça teve início em julho do ano passado, embora a ideia por trás de “Mãe” fosse algo com o qual Sofia se debatia há vários anos. Além das entrevistas, foi ainda realizada uma larga pesquisa dentro do universo literário do que é ser mãe e mulher. O resultado final é um espetáculo que “poderia ter sido de três horas e meia”. “Demos conta que tínhamos imenso material. Claro que em cima da mulher não está o mundo, mas estão muitos mundos na verdade”, contou a dramaturga. “Percebemos que se calhar não tínhamos de ter aqui os testemunhos todos e que há outras formas de elas estarem presentes. Elas não estão só lá, estão também atrás, suportando aquilo que nós estamos a fazer em todos os momentos, mas que não seja algo chapado.”
“Quanto mais não seja, porque alguém chegou cansadíssimo porque não dormiu. A improvisação desse dia vai ser com essa energia e se calhar nesse dia essa improvisação está mais mortiça, e nós vivemos com essa energia”, adiantou Ana Vargas.
O espetáculo “Mãe” foi criado e preparado exclusivamente por profissionais femininas, desde a interpretação à dramaturgia, passando pela cenografia e figurinos de Inês de Carvalho, pelo desenho de luz de Mafalda Oliveira e pela música, criada por Ana Bento. A criação de um espetáculo com base em artistas femininas tem, para Joana Gomes Martins, atriz e mães há 10 meses, um importante significado. “Mesmo nas artes, que é uma área mais pária, na verdade há sempre um peso muito grande do género masculino. Às vezes é só na área técnico-criativa, mas existe sempre, portanto termos um processo feito exclusivamente por mulheres é uma revolução”, começou por dizer Joana Gomes Martins.
“Às vezes tento fugir um bocadinho a estas ideias preconcebidas, mas a verdade é que nós, em trabalho e em ensaios, falávamos muitas vezes de uma energia que é feminina, que é uma energia de colo, do cuidar”, continuou a explicar a atriz. O apoio mútuo por parte das artistas foi algo salientado por Joana Gomes Martins. “Quase todas as mulheres na equipa são mães, mas depois temos um ou outro caso que não é. Tudo isso depois forma aquilo que é este trabalho e aquilo que é a ideia de mãe”, salientou.

Tentar ser mãe na sociedade atual
Acima, de tudo, a peça visa iluminar um lado invisível da maternagem que muitas vezes é ignorado pela sociedade. O objetivo, explicou Sofia Moura, é trazer para cima da mesa todas as questões que envolvem o ser-se mãe na sociedade atual. “Queremos mães, mas depois há toda uma série de condicionantes. É extremamente difícil de articular tudo”, contou, dando um exemplo de uma questão relativa ao papel de mãe. “Por acaso estamos num país com creches gratuitas, que é uma conquista, mas por exemplo no Reino Unido têm de pagar imenso pelas creches. As licenças de maternidade [em Portugal] não são como nos Estados Unidos da América, mas também não são como nos países nórdicos e há sempre conquistas que têm de ser feitas”, assumiu.
As três atrizes deram ainda o exemplo de uma mulher que não é nem quer ser mãe, e que quando questionada sobre o que queria dizer às mulheres do futuro respondeu que “o que queria dizer não era às mulheres do futuro, mas sim à sociedade: que se querem ter mães, criem condições para que o possam ser”.
“Ela falava muito da velocidade a que o mundo corre”, continuou a explicar Joana Gomes Martins. “Esta coisa voraz de termos de articular tudo. Vivemos numa altura em que o tempo nos consome, engole-nos. Às vezes dou por mim a pensar que quero aproveitar estes tempos tão importantes da vida do meu filho e que passam muito depressa, mas há tanto a que eu tenho de dar resposta”, prosseguiu.
Na perspetiva de Joana Gomes Martins, a posição da mulher numa sociedade em constante contrarrelógio é ainda mais dificultada quando o seu trabalho tem que ver com a Cultura e as Artes Performativas. “Esta coisa de sermos artistas é mesmo um lugar muito particular, porque nós não temos um trabalho. Nós temos de nos desdobrar em trabalhos que muitas vezes não têm que ver uns com os outros. Tanto temos trabalhos de criação como depois estamos a dar aulas porque temos de assegurar o vencimento ao final do mês”, esclareceu. “Depois ainda temos de estar com os nossos filhos, a brincar com eles, a alimentá-los, a dar-lhes banho, a vesti-los e a pô-los na cama. Ainda fazemos tudo isso. À custa de horas de descanso. É importante que isto seja falado”, explicou Joana Gomes Martins. Além disso, a conciliação entre vida pessoal e profissional e o esforço financeiro que são exigidos a quem quer ter um filho acabam, na opinião das atrizes, por ser “uma crueldade que está a ser feita e estão a criar-se muitas supostas vontades de não ser mãe ou pai à conta destes condicionamentos da sociedade”.

Uma peça que nasceu do amor
Ainda que aborde as dificuldades e alegrias que advêm de se ser mãe nos dias de hoje, a peça não tem uma ambição pedagógica. É, antes de tudo, uma experiência de reflexão de três mães e atrizes, com experiências individuais e distintas, que partilham a mesma condição.
Para Joana Gomes Martins, este espetáculo é um marco “tanto em termos profissionais como em termos pessoais”. “Todos nós, por mais que gostemos do que fazemos e por mais que sintamos que temos liberdade e que exercemos a nossa liberdade no nosso local de trabalho, às vezes não somos escutados, porque há outros valores que se levantam” assumiu a atriz. “Aqui o valor mais alto foi sempre o amor e o cuidado, tanto de umas para com as outras, como com o trabalho. Acho que isso foi sempre transversal.”
“Entrevistar estas mulheres e entrevistarmo-nos umas às outras trouxe momentos em que foi tão revelador que se tornou transformador. Este cuidado com todo o material que recebemos, com todo o amor e com toda a honestidade que nos foi dada… acho que não poderia ser de outra forma”, contou Joana Gomes Martins, explicando ainda que os ensaios das atrizes que eram visionados por outras pessoas suscitavam sempre a mesma palavra: cumplicidade.
Para a dramaturga da peça, Sofia Moura, o objetivo aquando do começo desta jornada era apenas um: falar de amor. Aquele que, segundo a literatura e as diferentes culturas é considerado o maior amor do mundo. “Falamos dele e está lá, mas com ele e dentro dele estão uma série de outras coisas que surgiram com o tempo. A minha ideia do projeto antes era só a camada de fora, mas acho que nasceram muitas coisas lá dentro e foi muito feliz esta relação entre as três”, concluiu Sofia Moura.
A peça foi produzida pela companhia Mochos no Telhado e conta com a coprodução, de entre outros, do Teatro Viriato, do Teatro Ribeiro Conceição e ainda do Centro Cultural de Carregal do Sal. A peça foi apoiada pela Direção-Geral das Artes.