Jorge Lopes

20 de 05 de 2023, 08:30

Cultura

Teatro: Uma 'invasão' no espaço público em nome do futuro do planeta

Companhia Formiga Atómica está a organizar apresentações surpresa em alguns locais de Viseu, alertando para o combate às alterações climáticas. “Teatro Fora de Formato” termina este sábado

Fotógrafo: Carlos Fernandes

Imagine que entre num café, pede para tomar um descafeinado, lê o jornal e, passados uns minutos, de repente, confronta-se com dois irmãos que alertam para “uma emergência” e para “um desastre de proporções épicas”.

O homem e a mulher conversam consigo, mas contam histórias completamente diferentes e dão perspetivas díspares sobre o mesmo tema. No entanto, independentemente do ângulo da conversa com cada um dos irmãos, fica-se com a sensação de que o mundo pode sofrer, e muito, com as alterações climáticas se não atuarmos.

Foi o que aconteceu no Café do Teatro, em Viseu, que foi palco de uma intervenção surpresa encenada pela companhia Formiga Atómica.

“Teatro Fora de Formato” é o nome do espetáculo cujas apresentações decorrem até este sábado (20 de maio) em alguns espaços da cidade, sem hora e local previamente marcados. Faz parte de um amplo projeto de investigação sobre a crise climática e a sua relação com a sociedade, culminando na estreia de uma nova peça de teatro, intitulada de “Terminal (O Estado do Mundo)”, no próximo ano e da qual o Teatro Viriato será coprodutor.

Miguel Fragata, encenador do projeto e diretor da Formiga Atómica, criou a performance com Inês Barahona e explicou o porquê desta intervenção artística no espaço público que começou já na passada quinta-feira (dia 18).

“Esta peça não é uma peça por si, faz parte de uma investigação que estamos a fazer e que tem precisamente a ver com a forma como as pessoas encaram determinados assuntos e a sua perspetiva em relação ao estado do mundo e à crise climática. Toda esta pesquisa visa mesmo perceber como, em contextos muito diferentes e situações muito diversas, as pessoas reagem à abordagem dessa questão”, disse.

O miniespectáculo (duração de 30 minutos) relata, na perspetiva dos dois irmãos, a história de uma família proprietária de uma antiga fábrica de molas que começou a fabricar peças de plástico e depois passou a produzir molas de madeira. Com a morte dos pais, os herdeiros descobriram a existência de uma caixa que possibilita a concretização de desejos, mas que acabam por provocar consequências negativas noutros lugares do mundo.

“A metáfora é a utilização dos recursos naturais. Cada vez que desejamos e consumimos alguma coisa, ela provém de um recurso natural que teve de ser utilizado para poder fazer existir”, explicou Miguel Fragata.

O encenador justificou as apresentações surpresa com a urgência de perceber como as pessoas são apanhadas e reagem às “provocações” geradas tanto pelo tema das alterações climáticas como pela própria situação quotidiana em que a atuação acontece. “Muitas vezes as pessoas interrogam se isso é teatro ou é simplesmente alguém que está desesperado e essa fronteira interessa muito para perceber como é que o tema é abordado”, afirmou.

Além do diálogo dos protagonistas, a apresentação também deixa mais algumas pistas como um cartão que é entregue pela personagem Simon, o irmão mais velho, e que diz “Teatro Fora de Formato” e ainda a forma de estar dos atores que “indica que alguma coisa está encenada para quem estiver mais atento”, explicou Miguel Fragata. “Muitas vezes fica-se na zona da dúvida e da ambiguidade e é nessa perspetiva de investigação e perceber como as pessoas reagem que optámos por este formato menos convencional”, disse.

Segundo Miguel Fragata, as reações à performance nos vários lugares por onde já passou têm sido as mais variadas. “A sensibilidade e a consciência das pessoas em relação à questão climática varia muito de lugar para lugar, mas aí tem mais a ver com diferentes níveis de consciência e vai variando de pessoa para pessoa”, sublinhou, acrescentando que, nas regiões com ligações à agricultura e pecuária, essa sensibilidade “muda muito e, por isso, há muito mais resistência em olhar para determinados aspetos”.

O ambiente e o consumo medidos através de conversas às cegas e um estudo
Além do “Teatro Fora de Formato”, o projeto da Formiga Atómica envolve também outras iniciativas como a Biblioteca Verde que propõe “livros à volta da questão climática, da sustentabilidade e do ambiente” e conversas com os seus autores. O Teatro Viriato recebeu recentemente o professor Jorge Paiva para uma dessas conversações, falando sobre a biodiversidade, as espécies botânicas e os sinais da crise climática e que pode ouvir na Rádio Jornal do Centro.

O processo de pesquisa inclui ainda entrevistas às cegas a pessoas improváveis que não se conhecem e que acabam por dialogar entre si e cujo resultado será mostrado num documentário. Inclui também um inquérito cujas conclusões constarão num estudo sobre os hábitos de consumo das pessoas e a sua disponibilidade para mudar esses mesmos hábitos. O projeto decorre em 27 locais e conta com muitos parceiros, incluindo alguns de França.

Miguel Fragata reconheceu que a crise climática é o “tema mais urgente e eminente que temos à nossa frente nos dias de hoje” e que é necessário deixar o alerta para tomar ação antes que se tarde demais.

“Se a arte tem um papel interventivo – e acredito que tem –, é precisamente para falarmos destas coisas, lançarmos estes alertas e pensarmos em conjunto sobre um tema tão amplo e esmagador que envolve tantas dimensões e que tem a ver com a forma como nós vivemos e com o sistema de consumo, de onde muito dificilmente nos conseguimos separar e quebrar as suas regras. E é muito importante semear estas sementes de reflexão e pensamento e o projeto passa muito por aí”, concluiu o encenador.

Se por acaso encontrar os irmãos numa loja ou mesmo no local mais improvável, dê-lhes tempo para falarem do futuro do planeta.